Barnes

Resenha do José Eli da Veiga, publicada em O Valor desta quinta, do livro Capitalism 3.0, de Peter Barnes.

A necessidade de criar uma ‘versão 3.0’
Por José Eli da Veiga, para o Valor, de São Paulo
03/01/2008

“Capitalism 3.0 – A Guide to Reclaiming the Commons” – Peter Barnes
Berrett-Koehler Publishers, Inc., R$ 48,77. Com versão eletrônica gratuita em http://www.onthecommons.org

É raro que um livro abra com duas sentenças tão reveladoras de sua mensagem: “Sou um empresário. Creio que a sociedade deve premiar toda e qualquer ação lucrativa que tenha êxito”. Mas são afirmativas que jamais haveriam rendido texto tão estimulante se não tivessem entrado em colisão frontal com outra profunda convicção do autor: “Sei que atividades lucrativas têm insanos efeitos colaterais: poluição, lixo, desigualdade, ansiedade, e pesadíssima confusão sobre o propósito da vida.”

Para complicar, o conhecimento histórico também já o havia convencido que governos – por mais representativos que possam ser – se já não cuidam direito dos interesses dos cidadãos, muito menos podem ser capazes de proteger os interesses de gerações futuras. Principalmente porque tendem a dar muito mais importância aos interesses das corporações privadas. Um problema que na democracia capitalista é sistêmico, segundo Peter Barnes, autor do livro “Capitalism 3.0 – A Guide to Reclaiming the Commons”.

Quem se identificar com o conjunto de “sentimentos” expresso acima, talvez por vezes também fique tão confuso e desmoralizado quanto estava Barnes antes de começar a matutar sobre o livro, dez anos antes de publicá-lo. O autor se perguntava, essencialmente, se poderia haver qualquer esperança, vista a incapacidade dos governos em oferecer qualquer bóia de salvamento contra o poderoso ralo do capitalismo – para ele, um dos maiores dilemas contemporâneos, senão o maior. Era impossível parar de pensar naquela parábola sobre a tragédia dos bens coletivos (“tragedy of the commons”), lançada décadas antes pelo biólogo Garrett Hardin, hoje já morto. Tese segundo a qual as pessoas sempre estarão propensas a exaurir bens naturais que estejam à disposição da coletividade, simplesmente porque isso faz parte de seu interesse.

O livro só pôde ser concebido quando o autor concluiu que a verdadeira tragédia era outra, não a de Hardin. E dupla: do mercado e do governo. Afinal, o bem comum não é a causa da própria destruição, mas, sim, vítima das falhas de mercados e de governos. A solução pode estar, portanto, em achar as maneiras de fortalecê-lo, o que significa, na prática, propor uma terceira versão do capitalismo. Depois da versão 2.0, da era da afluência, conforme a bela fórmula cunhada em 1958 por John Kenneth Galbraith (que superou longa etapa de insuficiência de oferta da primeira versão), só poderá ser o resgate do bem comum que levará ao capitalismo 3.0, diz Barnes.

Não é preciso ir além para que fique clara a imensa pretensão dessa obra: estimular uma mudança no sistema operacional do capitalismo, mediante reinvenção dos bens coletivos, criação de confiança, institucionalização de direitos de nascença e promoção de uma cultura de compartilhamento. Com a emergência de um forte concorrente, chamado no livro de “Commons Sector”, mercado e Estado seriam obrigados a se adaptar.

Se por capitalismo se entender simultaneamente um modo de produção e uma formação social, essa proposta pode ser vista como a mais recente reedição daquele sonho que deu origem à “Society of Equitable Pioneers”, em 1844, na cidade industrial de Rochdale, próxima de Manchester. Infelizmente, o que ficou conhecido como cooperativismo sempre esteve equivocadamente limitado às formas de organização da produção e do consumo, sem conexão com coisas que à época eram entendidas como “bens gratuitos” – ar, água, ecossistemas – ou coisas que agora são cada vez mais classificadas de intangíveis: música, férias, leis, matemática ou internet. A vontade do autor é que tudo isso venha a ser embutido em um único manancial, formado por três fontes: natureza, cultura e comunidade.

Dado o tamanho da ambição, inevitável será que muitos achem sofríveis as duas últimas partes do livro: “A solução” e “Fazendo acontecer”. Não há dúvida de que ficaram bem menos convincentes, ou persuasivas, que a primeira, na qual é apresentado o problema. Mas isso não terá a mínima importância se este for bem entendido. Sobretudo, se puder ser incorporado ao debate público o balanço sobre os limites dos governos e das privatizações feito por Barnes no início de sua obra. A rigor, este é um livro que compensa ser lido, mesmo por quem só venha a apreciar seu segundo capítulo, no qual é oferecida uma saborosa “breve história do capitalismo”.

José Eli da Veiga é professor titular do Departamento de Economia da FEA-USP e autor de “A Emergência Socioambiental” (Ed. Senac, 2007).