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Saudade dos Mineiros

4 Mineiros

Na foto acima, já incluída em outro post de dois anos atrás, troco idéia com os quatro mineiros – Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e meu padrinho, Hélio Pellegrino – na Praça da Liberdade em Belo Horizonte.

Completaram-se, no último dia 28, 15 anos da morte do Otto.

Este Brasil tão bagunçado sente muita falta destas quatro figuras brilhantes e generosas.

A propósito, reproduzo abaixo artigo do meu pai publicado ontem em O Popular.

A falta que o Otto faz

Washington Novaes

Passou desapercebido da comunicação, na última semana de dezembro, o 15º aniversário da morte do escritor e jornalista Otto Lara Resende, vítima de uma inacreditável infecção hospitalar no pós-operatório de uma cirurgia banal na coluna. Pena que tenha sido assim. Deixou-se de trazer à memória dos mais antigos e ao conhecimento dos mais novos algo da carreira de uma figura que faz falta – seja como escritor (O Braço Direito, Tabuleiro de Damas, Bom Dia para Nascer, Lado Humano, Boca do Inferno, O Retrato na Gaveta, As Pompas do Mundo, a Testemunha Silenciosa, entre outros), como jornalista, como conversador brilhante.

Otto transformou-se em figura mitológica na imprensa do Rio de Janeiro logo que para lá se transferiu, quase à mesma época em que seus inseparáveis amigos Hélio Pellegrino, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, que já haviam assombrado Belo Horizonte com seu talento e suas estripulias. Corriam de boca em boca as histórias e façanhas do Otto, como a capacidade de escrever editoriais para o Diário de Notícias, onde trabalhava de manhã, e respondê-los no dia seguinte em O Globo, onde trabalhava à tarde, e que tinha posições políticas diferentes. Essa capacidade ficou ainda mais evidente quando, na Rede Globo, escreveu a carta com o pedido de demissão do diretor-geral, Walter Clark, e a resposta do proprietário, Roberto Marinho, num episódio muito difícil.

Jânio Quadros, quando presidente, também era fascinado pelo Otto e queria levá-lo a qualquer custo para Brasília – Otto resistindo sempre. Mas foi lá que ele testemunhou o episódio que entrou para a história, quando Jânio, certo dia, perguntado por que tomara determinada posição, teria respondido: “Fi-lo porque qui-lo”. Otto, que estava no gabinete presidencial, contava a versão correta. Ele mesmo perguntara ao presidente por que fizera algo. Jânio, com seu modo peculiar, começou a responder: “Fi-lo porque…” Silêncio. “Fi-lo porque” – e novo silêncio. Jânio então levantou-se da cadeira, foi até a janela, mão ao queixo, olhar perdido na Praça dos Três Poderes, e completou: “Fi-lo porque… fi-lo…fi-lo…puta que o pariu, que coisa estranha é a língua portuguesa!”

Mas Otto gostava muito de duas de suas histórias do tempo de jornal. Uma, a do contínuo da redação de O Globo, que, ao vê-lo datilografar um texto em alta velocidade, com os dez dedos, e sem nada consultar, não escondeu o espanto: “Seu Otto, mas quer dizer que o senhor tem redação própria, não precisa olhar nada?” Na outra história, enfarado com as mesmices de uma campanha eleitoral, inventou no jornal, junto com Hélio Pellegrino, um candidato imaginário – professor Jubileu de Almeida, que estaria concorrendo ao cargo de senador pelo Maranhão. A cada dia, perguntava a um político federal (o Congresso funcionava no Rio) o que pensava do professor Jubileu. E invariavelmente recebia respostas vagas mas elogiosas, mesmo de políticos do Maranhão, embora ressalvassem que não o conheciam pessoalmente. Até que Rubem Braga acabou com a história, revelando que o professor Jubileu só tinha um defeito: não existia.

Frases do Otto circularam pelas redações durante décadas: “Então, fica resolvido assim: depois eu resolvo”; ou: “O câncer do meu vizinho não cura a minha gripe”. Tantas coisas fez que acabaram convencendo-o de que deveria candidatar-se a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Mas na última hora, arrependido, queria desistir e foi demovido da intenção por Hélio Pellegrino, ao dizer-lhe que “recusar a Academia já é vaidade excessiva”. Não desistiu, ganhou a eleição e, no dia da posse – segundo Fernando Sabino conta em Livro Aberto (Editora Record, 2001) –, “morreu de vergonha” porque, vestido com o fardão, teve de dividir o elevador em seu prédio, na hora de ir à Academia, com um almirante que envergava um lustroso uniforme branco de gala – os dois cismados e cabisbaixos.

Otto era assim, história atrás de história. Quando o convidei para ser meu padrinho na entrega do “Golfinho de Ouro”, no Teatro Municipal do Rio, em 1989, ele resistiu muito, dizia que eu o estava convidando porque morrera o Hélio Pellegrino, meu grande amigo e compadre, que eu teria preferido convidar. Eu insistia, lembrava que ele, Otto, é que me abrira as portas da TV Globo, no Rio, em 1975. Acabou cedendo. E na noite da entrega, contou primeiro, assustado, que poucos dias antes, quando dirigia seu fusquinha pelo Aterro do Flamengo, em certo momento vira, nítida, a cara do Hélio Pellegrino, que lhe dizia: “Otto, pára com isso! Eu não aguento mais essa saudade que você tem de mim!”. Depois, sabendo que eu admirava muito seu livro O Braço Direito, de 1968, narrou o seguinte: passara anos implicado com certas partes do livro e querendo reescrevê-las; por isso, acertara com uma editora uma nova edição; mas não conseguia fazer nada; até que, na véspera do prazo final, sentara-se à máquina e ali passara o dia todo, reescrevendo a história do inspetor do asilo de órfãos, na qual o episódio central, pungente, era o da morte de um menino chamado Nogueira. Na manhã seguinte, passou pela editora, entregou os originais e seguiu de carro pela Avenida Brasil, em direção a Nogueira, perto de Petrópolis, onde tinha um sítio para fins de semana; mas na altura da entrada para o aeroporto do Galeão, um menino, que estava com o pai numa ilha no meio das pistas, saltou de repente na frente do carro, foi atropelado e morreu; o próprio pai do menino depôs na polícia a favor do Otto, junto com outras testemunhas, isentando-o de culpa; mas ele não se conformava, ao contar a história, quase em lágrimas, na penumbra do Teatro Municipal.

Passo as mãos pela capa da versão inglesa de O Braço Direito (The Inspector of Orphans), releio cartas que me escreveu a propósito de um artigo sobre a morte da psicanalista Catarina Kemper e de outro texto sobre o Hélio no livro Hélio Pellegrino: a-Deus (coletânea, Editora Vozes, 1988), volto a ler o texto brilhante que produziu para o encerramento do Globo Repórter sobre o assassinato de Ângela Diniz (com quem ele convivera) por Doca Street em 1976, vem uma saudade imensa, perguntas inúteis.

Otto está por aí, junto com o Hélio Pellegrino, o Fernando Sabino, o Paulinho Mendes Campos, afinal juntos de novo, certamente repetindo pelo espaço infinito as estripulias que os tornaram amigos na adolescência, as conversas que os empolgavam na madrugada belo-horizontina, a invejável amizade que os manteve unidos pela vida afora. Salve, Otto!

Washington Novaes é jornalista

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1 Comment

  1. Sempre bom ouvir (ou ler) os causos do seu pai. Pena que ele não fique mais tempo nas festas.
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