Se vocês querem uma opinião imediata, na bucha, eu diria: é o melhor filme de super-herói de todos os tempos. Heath Ledger está terrível, diabólico como o Coringa. Quase tudo funciona perfeitamente. Christopher Nolan é o cara.
Agora, com calma.
A revolução que os autores de HQ da década de 80 fizeram com o personagem finalmente chegou às telas. Demorou muito. Em 1987 Frank Miller publicava a mini Cavaleiro das Trevas transformando o herói existencialista do início da década numa máquina militarizada de violência, arrogância e sadismo. A intenção de Miller é apresentar o personagem como uma força incontrolável, cujas ações são guiadas por uma lógica de ferro: o Mal deve ser punido, não importa os meios. O ponto alto é a luta entre ele e o Super-homem. Apesar de terem o mesmo nome, o filme não é inspirado pelo trabalho de Miller.
A mini, juntamente com Asilo Arkham e O longo dia das bruxas, deu mais profundidade ao personagem, estabelecendo a base psicológica final para a dramatis personae Batman. Ao mesmo tempo indicaram o cenário no qual esta construção funcionaria melhor: uma sociedade ou cidade em crise, à beira da destruição. Batman é uma figura extrema e funciona melhor quando apresentado contra uma cenografia igualmente extrema. Mais ainda do que no filme anterior, Gotham City desmorona, implode. O apelo da justiça ao medo é sempre um apelo desesperado.
É aqui que a figura do Coringa ganha relevância. Esqueça Jack Nicolson. A estética cartunesca de Tim Burton obrigou o ator a construir um personagem malvado, porém meio biruta, meio desenho animado. Não é o caso. O Coringa de Ledger é perverso, insano e genial. A certa altura temos a impressão de que Batman mais parece uma bola de tênis quicando de um lado para outro em Gotham, obedecendo aos caprichos milimetricamente calculados do Coringa. O relacionamento entre os dois personagens ganhou sua expressão mais sofisticada em A piada mortal de Alan Moore. O filme deixa claro sua inspiração na HQ. “Você me completa”, diz o Coringa. É como se Batman e Coringa fossem duas faces da mesma moeda.
Aqui o roteiro dos irmãos Nolan apresenta-se como um dos grandes trunfos do filme (embora, em nome do didatismo hollywoodiano, ele se explique demais através das falas do mordomo Alfred). Há várias tramas se desenrolando ao mesmo tempo, e cada uma delas caminha, de modo lento e inexorável, em direção à oposição entre Batman e Coringa. É o eixo de gravidade do filme. Para os dois o sentido da ação é evidentemente moral (a cena em que ele “atormenta” Harvey Dent no hospital é digna de mefistófeles), e sua resolução está vinculada a um velho cenário da teoria dos jogos. A luta dos dois, contudo, não é meramente uma luta entre os dois. Há algo maior em jogo, mais profundo. Como toda ficção de qualidade, O Cavaleiro das Trevas nos faz refletir sobre nossas escolhas morais e o modo como nossas ações determinam quem somos e o mundo no qual vivemos. Como diz Hannah Arendt, escolher como agir é também escolher o mundo no qual nossa ação faz algum sentido. E, supreendentemente, nem Batman nem Coringa podem existir num mundo sadio. Eles são, ambos, sintomas diferentes da mesma doença. E aí está o que um amigo meu chamou o “cinismo” do filme. Entre o caos destruidor e a ordem autoritária não nos resta outra opção senão rejeitar ambos. Esta é a dádiva do Coringa ao Batman e a Gotham City. “Why so serious?”