blog do escritor yuri vieira e convidados...

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Alteridade

Uma rapidinha com Guimarães Rosa para aplacar o calor infernal de fim de dia no Planalto Central e o calor geral desta vida abafada:

“Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba.”

(Do Grande Sertão Veredas).

O hippie reacionário

Eu sempre dou muita risada ao ver o Erik Cartman, o gordinho do South Park, xingando alguém de hippie. (Isso sempre me lembra uma ex-namorada que, ao passear por feiras de artesanato, costumava reclamar: “ai, que cheiro de hippie”.) O que eu nunca imaginei é que alguém chegaria um dia a me chamar – sim, a mim, limpinho e cheiroso – de “hippie reacionário”. Pois é, isso rolou.

Como roteirista, fui apresentado a uma figura que pretende dirigir uma adaptação livre para cinema do Fausto, de Goethe. Conversamos por algum tempo sobre o livro e, ao tratarmos do final, ela me deixou claro que não quer nada semelhante a uma “redenção” do protagonista, que o cara tem é de se foder de modo absoluto, como na “vida real”. “Então não é Fausto”, eu disse. E ela me respondeu que, “como marxista”, não acredita nessas bobagens tipo “redenção”, “culpa cristã”, “alma imortal”, “pecado” e coisas do gênero. Eu ri, claro. E discordei. Pra quê… Iniciou-se um daqueles debates infrutíferos, nos quais falamos com as paredes. (Imagino que isso tem a ver com a mania dos dirigentes marxistas de acabar com as discussões no paredão.) Coletivo pra lá, indivíduo pra cá, eternidade pra cá, História pra lá e assim por diante. Eu a compreendia, juro, mas a recíproca não parecia verdadeira – ela estava indignada! A figura, para completar, ainda é professora voluntária de literatura num acampamento do MST, onde, apesar da eterna desconfiança que os sem-terra mantêm para com pessoas de fora do movimento, e a despeito das “origens burguesas” dela, esforçam-se por aceitá-la. E ela entoava isso como se o fato de ter nascido numa família classe-média fosse… um pecado! Ficou muito claro que, em meio deles, ela se vê tão deslocada quanto uma menina pobre entre as patricinhas de Beverly Hills. E, tal como essa hipotética menina, “sabe” que a culpa dessa, digamos, ausência de comunhão é apenas dela, uma mera aprendiz de revolucionária que se põe feliz como um cachorrinho cada vez que um camponês (isto é, um pobre! um proletário! um membro real do povo!) lhe dá atenção. Mas o mais incrível mesmo era vê-la defender aquela gente que, em vista de seu próprio depoimento, jamais colocaria a mão no fogo por uma “burguesa”. Afinal, ela faz parte da classe injusta e eles, da classe dos justos, uma turma que, antes das sete da manhã, se reune para berrar slogans revolucionários e dar gritos de guerra. (Segundo o documentário do João Salles, até o Lula ficou amedrontado ao presenciar isso.)

Conversa vai, conversa vem, insisti num final com a redenção de Fausto. Ela achava isso “ultrapassado” (!!), como se algo que dependesse da eternidade fosse condicionado pelo tempo. Mas explicar isto era inútil. “Ora”, repliquei, “até o Pulp Fiction do moderníssimo Tarantino, um filme de 1994, tem redenção e, de lá pra cá, ainda não conseguiram, nem mesmo o próprio Tarantino, rodar uma tragicomédia que fosse além desta, tanto em forma quanto em conteúdo”. E passei a descrever o início da conversão de Jules, capanga do Marsellus, que acreditava piamente não ter sido baleado graças a um milagre divino. E entrei, pois, a discorrer sobre fé, demostrando que a redenção de Jules foi comprovada por sua atitude corajosa e ponderada na parte final do filme.

Ela arregalou os olhos: “Yuri, você é um dos caras mais loucos que já conheci!”

“Ah, é? E por quê?”

“Cara, você é um hippie reacionário!!”

“Um hippie reacionário?!”, e desatei a rir. “Como assim?”

“Bom, segundo me disseram, você não tem onde cair morto, tá desempregado, não é mais empresário, vive de bicos “artístico-culturais”, seu pai é aposentado (ou seja, não é rico), você não tem diploma, nem sequer tem dinheiro pra ir ao cinema e tomar um chope… Você é praticamente um hippie, cara! Só que cheio de idéias anti-progressistas, conservadoras, capitalistas, liberais, religiosas, enfim, um autêntico reacionário.”

De fato, diante dela, eu era um escândalo a abalar sua fé marxista. Como era possível existir alguém cujas idéias e princípios não representavam a ideologia de sua suposta classe social? Se ela estivesse em meu lugar, certamente já teria se mudado para um acampamento do MST. Ela me encarava embasbacada. Não conseguia engolir o fato de que, se eu estava na merda financeira, isto se dava simplesmente por incapacidade e incompetência minhas – aliadas, é claro, à rapinagem e corrupção estatais (meu estúdio quebrou por ação da “máfia dos fiscais” de São Paulo) – e não por culpa dos “ianques”, dos “capitalistas exploradores” e dos “banqueiros bandidos”. Já eu não parava de pensar que “hippie reacionário” teria sido um ótimo nome para este blog…

O Garganta de Fogo em erupção

Eu certamente já esclareci isto em algum post, mas, se ainda não o fiz, faço-o agora: este blog deve seu nome ao vulcão equatoriano Tungurahua (do quechua Garganta de fogo), de 5060 metros, que a duras penas escalei anos atrás, antes que reiniciasse a série de erupções em que se meteu a partir de 1999. (Veja as fotos no meu perfil.) A foto abaixo foi eleita a foto do dia pela Folha de São Paulo. (Isso é o que eu chamo de propaganda subliminar…) Que Deus olhe pelo povo de Baños e de Ambato, Província de Tungurahua, e pela família Naranjo, minha família de intercâmbio, que vive próxima ao vulcão Cotopaxi (5890m), alguns quilômetros mais ao norte, que também escalei, e que ainda é ativo. Viver à base dum vulcão é como viver coletivamente sob a espada de Dâmocles.

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Authors@Google: Neil Gaiman

A Google tem organizado palestras com escritores convidados no campus da empresa, divulgando-as em seguida através do Google Video. Eis a palestra do Neil Gaiman, autor de Sandman, aliás, único trabalho dele com que tomei contato, por insistência de amigos. Entre outros, gostei do trecho onde conta que, numa reunião literária, alguém lhe indagou o que escrevia. “Comics“, ele respondeu, para desgosto do interlocutor que reagiu com uma careta. “Sei… Algo conhecido?” “Bom, Sandman, etc. etc.” E o cara: “Mas então você é Neil Gaiman!” “Sim, eu mesmo.” “Mas, meu amigo”, tornou o outro, “você não escreve comics, você escreve graphic novels…” E Gaiman comenta com a platéia: “Me senti uma puta sendo chamada de garota de programa…” (A tradução é minha, perdoe qualquer equívoco.)


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“Permaneço um racionalista”

Seria psicanalítico demais, depois de postar o texto do Graciliano, citar o José Guilherme Merquior? Acho que não. Ter consciência da crítica do Graça – é… sou íntimo dos meus heróis – aos “intelectuais de miolo mole” faz da minha citação algo mais do que um ato falho freudiano (falho exatamente quando inconsciente). Faz dela justamente uma filiação, apesar do Merquior nada ter a ver com meus devaneios de “sumo pontífice em brochura”. Ser amigo dos mortos tem esta vantagem. Além disso, ela diz muito sobre minha posição intelectual e pessoal a respeito do meu último debate travado no blog.

Doa a quem doer, permaneço um racionalista – embora firmemente convencido de que o único racionalismo consequente é o que se propõe, não a violentar o mundo em nome de seus esquemas, mas a apreender em seus conceitos, sem nunca render-se ao ininteligível, sem jamais declarar o inefável, a essência de toda realidade, ainda a mais esquiva, mais obscura e mais contraditória. Somente as almas cândidas, os cegos voluntários e os contempladores do próprio umbigo não percebem e não aprovam a virilidade desta Razão; mas ela é apenas a própria e íntima razão de todo verdadeiro conhecimento humano.

Linhas Tortas

Quando comecei a escrever para o blog corri à livraria mais próxima e comprei o livro. Quem dera eu tivesse 10% da capacidade do Graciliano para a ironia fina! Desisti muito cedo de ser escritor, em alguma medida por conta do texto que segue. Foi uma porrada bem dada no meu ego.

O literato em esboço é um sujeito que tem sempre no cérebro um pactolo de idéia e que ordinariamente não tem na algibeira um vintém.

É poeta na acepção vulgar da palavra – é desocupado. Anda com a cabeça no ar, como convém a um indivíduo que faz versos. Através da fumaça branca de seu cigarro percebe vagamente alguma coisa muito brilhante e muito grande a acenar-lhe. É afoito, ri muito, gesticula em excesso, fala alto, principalmente a respeito de sua pessoa.

Eclipse na Vila

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A las seis de la mañana (Facundo Cabral)

Ma che futebol que nada!

Futebol?! Eu prefiro é acompanhar o arremedo de debate entre o Rodrigo Constantino e o Olavo de Carvalho. (Já comentei sobre um dos gols aqui.) Arremedo porque, bem, um dos lados não quer assumir a disputa. (Tá parecendo um jogo entre a Seleção do Penta e, sei lá, o Coritiba em fuga.) Na verdade, eu prefiro não dar palpites, ando muito relapso para me meter numa confa dessas. Se o Olavo é fodão e o Rodrigo, fodinha, eu sou um fonada. Vou ficar é assistindo. (Claro, vão dizer que sou torcedor descarado de um deles. Bom, sou socrático, eu torço é pela verdade e pela tríade bom-belo-justo. Quem está com elas? Ora, aquele que acompanhar a polêmica com a tranquilidade e atenção necessárias terá a resposta. E, se for para escolher um time, escolho o Urântia, time com o qual nenhum dos dois se identifica. Alguém conhece?)

O Sexo Anal e a Alma Feminina

Sexo Anal

Dá preguiça demais ler na tela do computador, especialmente ficção e jornal, que são leituras que induzem e pressupõem certos estados de espírito. Jornal, em dia de semana, eu leio aos pedaços, entre um comando e outro no computador da ilha de edição, entre uma tarefa e outra. Em fim de semana, leio esparramado no sofá, escutando música e tomando café ou abrindo os trabalhos com a primeira cerveja do sábado. Livro é livro. Tem que ser de papel e pronto, pesar nas mãos, dar culpa de sublinhar, etc e tal.

Isto posto, digo que abro poucas exceções para textos de ficção na tela do computador. Mas devo confessar que, nas poucas vezes em que o fiz, não me arrependi. E, por coincidência, tratam-se de três romances que guardam incríveis e louváveis semelhanças entre si.

A primeira exceção, já há alguns anos, foi para o “Mulher de um Homem Só”, do Alex Castro, que àquela época ainda se chamava Alexandre Cruz Almeida. Como ele anda tramando sua publicação em papel, tirou o livro temporariamente do ar. É romance curto que não se consegue largar depois de poucas páginas centrado em torno da pergunta de se é possível uma verdadeira amizade entre homem e mulher. Uma genial incursão pela mente de uma mulher decidida a manter seu macho. Delicioso e muito engraçado.

A segunda exceção, bem mais recente, foi para o “Romance Barato”, de ninguém menos que nosso camarada de blog, Ronaldo Brito Roque. Outra genial incursão pelas mentes femininas, pelas emoções, ingenuidade e frieza de garotas que optam pela “vida fácil”. Também me prejudicou os afazeres, pois, uma vez iniciado, não pude mais largá-lo. Literatura do país de Nelson Rodrigues. O rapaz tem sensibilidade e verve. Está tentando publicá-lo e, espera-se, em breve, todos terão o privilégio de se divertir e emocionar com sua literatura.

A terceira exceção, recém concluída, foi para o “Sexo Anal – Uma Novela Marrom” do Luiz Biajoni. Puta que o pariu! Que livro! Como já foi dito, quase um filme. Uma novela visual. Que inveja desse cara. Vá escrever assim no inferno. O Biajoni tem uma capacidade absolutamente anormal para, em escassíssimas linhas meramente descritivas, derramar imagens muito poderosas. O cara não elabora, não psicologiza. Explicita as emoções dos personagens com muita parcimônia, pois não precisa. Está tudo ali nas entrelinhas naquela magia que pouco escribas dominam com tanta habilidade.

“Sexo Anal” é sexo anal, sexo oral, hetero e homossexual, fios-terra, hemorróidas, vibradores, repórteres policiais que gostam de travestis, justiça com as próprias mãos, maçons porcos rindo com escárnio, policiais corruptos, imprensa marrom, cocô e sangue. Contínuos de escritório, punhetas, podolatria. Porra, cerveja choca e fumaça de cigarro. E tudo isso com uma leveza incrível. Humor fino e pura ironia. Qualquer acidez fica por conta do leitor.

Como disse Idelber na orelha do ebook (e ebook tem orelha??), Sexo Anal é “pós ou transpornográfico”, pois “ao escancarar já no título paradoxalmente esvazia qualquer bobinha pretensão de excitação e voyeurismo punheteiro com o texto.” É fato. Você vai até ficar de pau duro ou molhada, mas não dá pra largar o livro e ir pro banheiro. Logo você estará rindo desmesuradamente para, em seguida, se incomodar com a crueza de cagadas e sangue na privada, estupros e assassinatos, e pouco depois puto com coroas gosmentos e qualquer sombra de excitação já terá passado.

A sinopse, nas palavras do próprio autor:

Em “Sexo Anal – Uma novela marrom” uma jornalista descobre as delícias do sexo anal ao mesmo tempo em que é escalada para cobrir – junto a um jornalista policial experiente – um crime bárbaro de estupro e morte. Em paralelo, seu namoro vai mal por conta do assédio de um médico bem-sucedido. Seu namorado conhece uma garota virgem de 23 anos que sofreu um abuso sexual na pré-adolescência e se interessa por ela. Uma homossexual, amiga de faculdade da jornalista – e apaixonada por ela -, faz de tudo para afastar os dois.

Não perca tempo! Antes que ele se envaideça com a enxurrada de elogios e declarações de amor e resolva cobrar, vá lá e baixe seu exemplar.

Finalmente, não posso deixar de enfatizar a semelhança de estilo, temática e de atmosfera entre os três romances citados. Sobretudo me parece curiosa a similaridade na enorme sensibilidade destes três autores homens para sondar a alma feminina. São três obras que têm mulheres como personagens centrais. E tenho certeza que as meninas teriam que ser muito hipócritas, invejosas ou se sentirem amedrontadas demais para negar que os três descrevem com argúcia e sutileza o que se passa no coração e na cabeça delas. Muito bacana.

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