blog do escritor yuri vieira e convidados...

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Lugares-Memória VIII

Zion Bar

Em Lençóis, Bahia, espero que ainda sobreviva este aprazível boteco gerenciado segundo os ditames da filosofia rasta-baiana. Tomara tenha sobrevivido à maravilhosa lentidão de seu atendimento. No Zion, uma cerveja podia demorar horas, mas pouco importava. Eu estava na Chapada Diamantina, e aquele pequeno caramanchão de palha, a vista da cidade histórica, o som de Bob Marley e a conversa lenta de seus donos eram os sinais da entrada em outros parâmetros de relação entre tempo e espaço.

Lugares-Memória VII ou O Meu Islã

Nada me soa mais estranho do que o fundamentalismo islâmico. Todo o meu contato com o mundo muçulmano sempre me mostrou o oposto do que esses loucos professam e fazem. É verdade que, por outro lado, nunca estive em um país de maioria islâmica, e portanto minha experiência tem algo de limitada. Mas conheci muitos muçulmanos de diversas nacionalidades – paquistaneses, indianos, nigerianos, palestinos, indonésios, egípcios, sudaneses, iranianos, sauditas, marroquinos, tunisianos, entre outros – e tenho uma imagem dessa gente como afetuosa, humana, alegre e tolerante.

Lugares-Memória VI

Cabo da Boa Esperança, África do Sul

O Cabo, ponto de encontro das águas frias do Atlântico e das águas quentes do Oceano Índico, é um lugar idílico, onde altas paredes de rocha desafiam o mar a derrubá-las, e onde os campos da savana africana se debruçam sobre o mar como se fossem saltar e, de um pulo, cobrir seu azul turquesa com um manto verde. E o vento, soprando incessante, lembra todo o tempo da desesperança que esses cabos encarnam, no meio do caminho entre tempestades.


Cape of Good Hope, South Africa

The Cape, meeting point of cold Atlantic waters and warm ones from the Indic Ocean, is an idyllic place, where tall rock walls challenge the sea to knock them down, and where the fields of the African savannah lean over the ocean as if about to jump out and, with that hop, cover the turquoise sea with a blanket of green. And the wind, forever blowing, reminds one all the time of the despair theses capes incarnate, midway between storms.

Com as mãos do diabo (conto)

Aquela noite foi a primeira em que ela se sentiu realmente esposa, porque teve de esperar. Ele não veio às dez, não veio às onze, e à meia-noite também não conheceu o calor infernal que já lhe queimava o ventre. As roupas foram para o chão. O lençol, esfregando-se em seu corpo, chegou mesmo a parecer um outro corpo, leve como de criança, porém ligeiramente áspero, como os primeiros pêlos de um adolescente. E foi mesmo a juventude, com seu ímpeto de descoberta, que tomou aquelas mãos delicadas e as fez descer sobre um ventre que já ardia como a própria pele do diabo. Quando abriu a porta de casa, o marido ouviu os gemidos da secreta agonia. Quis matar o amante, depois de invejá-lo pelos gritos sinceros que ele arrancava da sua mulher. Na cozinha, escolheu a faca mais afiada. Chegou ao quarto pronto para esquartejar o próprio diabo, se ele tivesse corpo. Mas o diabo era apenas um calor úmido que agora se esvaía do corpo dela. Não havia mesmo ninguém no armário. Na cama, uma mulher exausta e um lençol molhado. O marido sabia o que tinha acontecido, ou antes, pensava que sabia. Na verdade só ela conhecia o segredo daquela descoberta: um segredo que ela não revelaria a um homem que se atrasara mais de duas horas. Dormiram calados. Ele aturdido pelo medo, ela com um riso nos lábios.

Uma tentativa de explicar o amor

A história da literatura está repleta de casos em que uma jovem se apaixona por um poeta ou por um artista devasso e mais tarde o deixa para se casar com um empresário bem sucedido. Essas histórias revelam um aspecto fundamental da natureza da psique feminina, que muitas vezes escapa às próprias mulheres, mas que nunca deixa de se manifestar na realidade.

Na juventude a mulher precisa se entregar a experiências de transgressão para descobrir, por si mesma, a utilidade e a necessidade da disciplina e das normas sociais. Também é comum que ela queira adotar qualquer comportamento que esteja em franco contraste com as normas e os conceitos de seus pais, para medir a autoridade que eles têm sobre ela. Assim, o poeta marginal, o artista devasso, o hippie doidinho ou, nos casos mais extremos, um criminoso verdadeiro, aparecem como os homens que possibilitarão à mulher viver as experiências que ela precisa viver naquele período; e ela se sentirá atraída por eles. Além disso, é nesse período que a mulher precisa medir a sua própria capacidade de seduzir e é natural que ela queira “testar-se” com algum homem antes de partir para o relacionamento que ela julga que realmente a realizará.

O Irmão Morto

Foi somente quando meu filho, com justificada dureza, afirmou que cuidaria do cadáver de seu irmão, que compreendi que deixara de ser criança.

“O que a senhora acha? Que vou deixar que o homem do necrotério prepare o corpo, como um taxidermista estufando um pássaro para a vitrine de um museu?”, disse ele entre lágrimas.

O pranto dolorido me subiu o peito de imediato. Duas mortes de dois filhos no mesmo dia me faziam querer morrer também. O primeiro morrera sem deixar de ser criança para mim, o segundo morria deixando de sê-lo.

Lugares-Memória III Memory Places III

Rio Encantado, Goiás, Brasil

Esse é meu grande esconderijo. Paraíso de mil aventuras na infância, onde eu buscava traços das estranhas terras descritas por Tolkien. É o lugar onde desenvolvi os sentimentos que me unem a isso que chamamos de “natureza” – um misto de embevecimento e saudade de algo que não posso precisar; algumas vezes paz profunda, outras, um forte medo de algo que parece prestes a me engolir.

O Encantado é água verde sobre rocha num imenso jardim japonês de Cerrado. Um canto escondido perto de onde o Araguaia ruge furioso em seu cânion.

Encantado River, Goiás, Brazil

This is my hideout. A paradise of a thousand childhood adventures, where I sought hints of the strange lands described by Tolkien. The place where I developed the feeling that bonds me to what we call “nature” – a mixture of astonishment and of missing something I cannot precise; sometimes a deep inner peace, others, a strong fear for something that seems about to swallow me.
Encantado River is green water over rock inside a huge Japanese garden in the Brazilian savannah. A hidden corner near where the Araguaia River furiously roars through its canyons.

Lugares-Memória II Memory Places II

Já é madrugada, mas vários casais passeiam com bebês nesta praça. A fonte borrifa sua água sobre nós, e eu fecho os olhos, desfrutando o contraste de sensações depois do dia de escorchante calor neste oásis no deserto. Longas conversas depois de duas garrafas de vinho à mesa de um café sob as árvores da calçada. Amanhã, partimos para a montanha mais alta das Américas.

As ruas densamente arborizadas, os cafés nas calçadas, a sombra dos Andes a poucos passos e sua personalidade latina fazem de Mendoza uma das cinco cidades mais legais deste continente.

It is late in the evening, but several couples stroll around carrying their babies. The fountain sprinkles its cold water on us. I shut my eyes, enjoying the contrast between this sensation and the scorching heat during the day at this oasis in the desert. Long talks after two bottles of wine at a sidewalk café under the trees. Tomorrow, we depart to the highest mountain on the American continent.

The shaded streets, sidewalk cafés, the shadow of the Andes, just a few steps around, and its Latin personality inscribe Mendoza among the five coolest cities of Latin America.

Pão em coreano

Assisti ao filme coreano citado pelo Pedro NovaesCasa Vazia, de Kim-ki Duk – ainda em São Paulo. Também gostei apesar da forçação de barra do final. (Nossa, sensação mais esquisita, acho que nunca havia escrito forçação na minha vida, imagine, uma palavra com dois c-cedilhas!) Na mesma semana em que o assisti, fui a uma festa com o Sunami Chun, diretor-presidente da Monkey Lan House. Lá, o Chun me apresentou “Marcelo”, assim entre aspas porque, na verdade, “Marcelo” era da Coréia do Sul e, depois de quase dois anos no Brasil, decidiu adotar um nome que, além de ser “sexy para as mulheres”, não fosse impronunciável por seus amigos brasileiros. Misturando português com um tanto de inglês (de Tarzã), conversamos longo tempo sobre seu país, seu cinema atual, sua história, a língua, a influência chinesa, japonesa, portuguesa e assim por diante. Porém, como neste exato momento estou com meu módulo baiano ativado, e por isso estou com uma preguiça de rachar o chão, me limitarei a descrever apenas alguns pontos desse papo. (Atenção, baianos, não estou sendo preconceituoso: realmente herdei alguns legítimos genes baianos dos meus avós paternos e, tanto como o Caymmi, sei do que falo.)

O sonho

Dirijo o carro. Não sei qual cidade é. Não sou daqui. Os nativos falam uma língua que não conheço, mas eu a entendo perfeitamente. O trânsito está complicado. Decido deixar o carro.

Caminho por uma rua estreita e inclinada. Tem calçamento de pedras. Desço-a. A via está tomada por pedestres e tem muitas lojas pequenas. Parecem lojas para turistas.

Sinto uma sensação estranha. Vislumbro a rua estreita à minha frente. Sinto vontade de correr. Devo percorrê-la. Preciso chegar até o seu fim. Parto. Corro. Corro bem rápido. Devo chegar ao fim da rua.

O tempo está nublado. Há muitas nuvens escurecidas. Corro. Começo a ver o mar, as nuvens sobre o mar. Ainda é dia, há sol também, mas a noite já começa a surgir. Ainda corro. Estou chegando perto do mar, estou chegando. Vejo um pequeno píer. Não há embarcações. Do lado direito, uma montanha.

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