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Os heróis(!?!) da Montanha

Everest - by UWCSEA

Noutro dia, comentando um post do Pedro, falava de uma notícia na TV local de que um neozelandês – que havia perdido as duas pernas num acidente no Mount Cook em 1982 – tinha finalmente chegado ao topo do mundo. Um herói, claro!

Chegar ao cume do Everest não é pra qualquer um, aliás, apenas estar naquela parte do planeta é para poucos; voltar vivo então, restringe ainda mais o grupo ilustre.

Há anos me interesso por esses adoráveis e temerários heróis, dentre eles meu irmão, que escalou o Monte Aconcágua, nos Andes, em 1997.

Esses loucos de carteirinha fazem a Terra menor à medida que realizam seus sonhos, que de tão mirabolantes e absurdos nos parecem risíveis ao primeiro contato, mas se tornam feitos memoráveis na volta pra casa.

Essas pessoas são sim feitas de algo mais! Algo que as move para o assustador desconhecido em busca do inominável! E, todos nós, os outros meros mortais, vamos seguindo atrás, primeiro descendo das árvores, depois saindo das cavernas…

Na entrevista para um correspondente da TVNZ, em Katmandu, o tal kiwi, Mark Inglis, mostrando as mãos com dedos enegrecidos e fadados à amputação, manteve o curto e ácido senso de humor neozelandês, ao contar que chegando lá em cima, deu uma breve olhada ao redor e exclamou: “Let’s get out of here!” (Vamos embora daqui!).

Os risos só cessaram quando foi questionado sobre as circunstâncias da morte do montanhista britânico David Sharp. “Das mais de 40 pessoas lá em cima, nossa expedição foi a única que parou para tentar ajudá-lo, mas não havia muito o que fazer!”, disse um desconcertado Inglis.

E, então, uma estranha nuvem turvou todo o resto do que poderia ser um relato maravilhoso de uma conquista por si grandiosa, mas muito mais incrível por causa da sua condição física.

Sim, uma nuvem de pesar! Pesar pela morte do inglês e dos outros também, mas, principalmente, pela morte dos princípios éticos, que estão no famoso “Código da Montanha” (apresentado à mim, respeitosamente, pelo herói da família), e que fazem, ou, ao que parece, faziam desses montanhistas seres humanos acima de todos os outros.

Conceitos como bravura, coragem, força, determinação parecem ter significados diferentes para essa nova safra de heróis, uma vez que visivelmente estão apartados daqueles conceitos tão essenciais em paragens como a Antática de Ernest Shackleton, ou o Himalaia de Sir Edmund Hillary: solidariedade, espírito de equipe, companheirismo, liderança, compaixão.

Aliás, foi o próprio Sir Ed (como é conhecido por aqui esse senhor simpático que estampa as notas de $5 dólares locais e que foi o primeiro ocidental a conquistar o Everest em 1953) quem me alertou para isso no jornal dessa manhã: Em nossa expedição nunca haveria a menor probabilidade de que, se um membro da equipe ficasse incapacitado, nós o deixássemos lá para morrer”.

Para ele, as pessoas estão perdendo de vista completamente o que é importante, já que “tem havido numerosas ocasiões em que pessoas foram negligenciadas e deixadas para morrer, o que não considero uma filosofia correta. As dificuldades que se apresentam em grandes altitudes não são desculpa; eu penso que a atitude inteira para escalar o Monte Everest se tornou aterrorizante. As pessoas querem apenas chegar ao topo e não dão a mínima para qualquer outro que possa estar em agonia. Não me surpreende que deixem alguém sob uma rocha para morrer”.

Eu mesma, do alto da minha miserável condição de covarde sedentária, ao me maravilhar com todos os incríveis relatos de conquistas e aventuras, já desconfiava que o algo mais de que são feitos esses super-heróis sem capa não era nem de longe a ganância ou a vaidade. Era a humanidade, em seu conceito mais elementar!

Em tempo: em uma pesquisa de opinião feita hoje no site que abriga todos os grandes jornais diários da Nova Zelândia, perguntam “Should Mark Inglis’ Everest climbing party have attempted to save dying British climber David Sharp?” (A expedição de Mark Inglis ao Everest deveria ter tentado salvar da morte o montanhista David Sharper). Até as três da tarde desta quinta-feira (25 de maio), 32.1% (1655 votos), disseram “Sim, é o dever do montanhista!” e concordam com Sir Ed. Outros 969 votos, ou 18.8%, disseram que “Não, este é um risco em escalar o Everest”. A maioria, 2525 votos (49,0%), no entanto, acham que “é muito difícil julgar sem estar lá”. É isso aí!

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1 Comment

  1. Rosa
    Muito bom vc tocar nesse tema. Tema este, aliás, que me vem à mente quase todas as tardes. Já me explico. Astes um preâmbulo.

    Quando começamos a escalar montanhas, a fazer caminhadas, eu, o Dante e mais tarde os demais membros do GEMBLA, entre eles teu irmão, tínhamos todos sempre em vista a questão da amizade, que, a partir de certo momento, tornou-se um verdadeiro problema, já que, como neste blog, eu era o único que de fato era amigo de todos. Diversas vezes precisei intervir para que não rolasse nenhuma briga de canivete ou coisa semelhante. Vc deve saber, por exemplo, que o Robson morria de vontade de ver o Dante enforcado com a corda de alpinismo num paredão da Chapada. E vice-versa. O fato é que, havendo laços afetivos e/ou de camaradagem entre os membros do grupo, tudo sairá mais ou menos como coloca Sir Edmund Hillary (meu Deus, ele ainda está vivo!!!):

    Em nossa expedição nunca haveria a menor probabilidade de que, se um membro da equipe ficasse incapacitado, nós o deixássemos lá para morrer.

    Entre nós também esta era a regra. A maioria se deu bem com o Dante, apesar das diferenças. Aliás, regressamos duma viagem de 15 dias de trekking na Chapada dos Veadeiros – 1987? 1988? não sei ao certo – porque o Robson vinha sentindo dores no peito (era Julho e fazia muito frio) e, de fato, após ser examinado descobriu que estava com pneumonia. Voltamos todos – por causa dele.

    Mais tarde, no Equador, fui descobrir o outro lado do montanhismo. Os grupos são formados mais pela habilidade que pela amizade e, por isso, os laços se baseiam mesmo é no objetivo comum de alcançar o cume e não no prazer de compartilhar uns quantos dias de aventura junto a uma pessoa que participa da nossa intimidade e confiança. Num refúgio de alta montanha, costuma haver um clima de competição e egolatria extremamente palpável. Senti isso forte por lá. O europeu mais amigável que conheci foi justamente um que não tinha senão os dedões dos pés, tendo perdido os demais no Himalaia. Sentiu verdadeiro prazer em me mostrar os pés pontudos. Disse que não havia problema, que o dedão é que propiciava equilíbrio. Mas era patente que tudo se resumia a mais uma bizarra demonstração de orgulho. Ele viajava sozinho. Não queria ser responsável por ninguém. Só escalava com outra pessoa se, no refúgio ou acampamento base, encontrasse alguém com o seu mesmo grau de ousadia e técnica. Enfim, quando se está numa situação de risco, com pessoas quase desconhecidas, rola o famoso “cada um por si”, ainda que escalem em grupos. Porque há outro aspecto, todos ali pensam: se esse figura veio até aqui é porque conhece os riscos, problema dele portanto. O que, até certo ponto, tem sua lógica.

    Eu disse que penso quase todos os dias nessa questão, mas devido a outro esporte: a natação. Tenho nadado quase todas as tardes. E, cada vez que caio n’água, principalmente na água gelada desses meses de outono, me vem à lembrança o caso daquele empresário que, após um acidente de helicóptero no mar de Angra, deixou a namorada se afogar e nadou sozinho até a praia. Nesses momentos, dentro da piscina, cada braçada que dou é um pensamento de pesar pela coitada da garota. Eu seria capaz de deixar uma mulher amada para trás no meio do oceano gelado e durante a noite? Deus me livre dessa prova. Porque eu viveria como um morto se me salvasse após abandoná-la. Anos atrás, eu até poderia arriscar a ter essa opção: “ah, ela está com cãibra, está cansada, se eu a carregar vou me cansar também e morreremos ambos – vou sozinho.” E foi o que o tal cara fez, deixando-a ainda viva com a tênue promessa de ainda poder voltar e resgatá-la. Mas, no fundo, ele sabia que não iria rolar nenhum resgate. Eu poderia ter feito isso dez anos atrás, quando estava com Ivan Karamazov: “se Deus não existe, tudo é permitido”. Mas, hoje, creio na vida eterna. Nessa perspectiva, mais vale a atitude mais corajosa, mais nobre, do que aquela baseada na salvação do próprio corpo. Ou seja, mais vale salvar a própria alma a continuar vivendo num corpo sem virtude. E Jesus disse: “não há amor maior do que o daquele que dá a vida por seus amigos”. Peço a Deus para me livrar dessa prova – principalmente se eu ainda não tiver escrito os livros que planejo escrever – porque seria imperativo, para mim, arriscar minha vida por essa mulher. (Agora, cá entre nós: esse sujeito amava de fato a namorada?)

    Mas vc falava dum montanhista que deixou de resgatar a outro que ele não conhecia. É preciso mesmo ser cheio de compaixão para salvar alguém na alta montanha. Porque as chances de perecer são muito elevadas. Você precisa levar muito a sério as coisas que Jesus dizia, tipo “amai-vos uns aos outros como eu vos amei” e “no Reino do meu Pai há muitas moradas”. Por esse ângulo, arriscar-se por uma mulher que se ama é muito mais fácil que isso. Infelizmente, que Deus me ajude, creio que ainda não sou capaz desse amor. Recentemente, um parente do meu cunhado morreu congelado na Holanda ao saltar num canal para resgatar uma suicida. Ele a salvou, mas não resistiu. Tinha 22 anos. Esse cara deve estar hoje num lugar muito bom porque arriscou e deu a vida por uma pessoa que nunca vira antes. Isso é compaixão. Isso é amor. Assim, a questão nem pode ser resumida num “é muito difícil julgar sem estar lá”. A não ser que seja a própria vítima quem nos dê o conforto – “vá embora, meu irmão, vá em paz, vá com Deus, me deixe aqui, do contrário morrerá comigo” – não há como manter a consciência livre de culpa. Porque a verdadeira questão é: “é muito difícil estar lá sem saber amar”. (Ou estar em qualquer parte.) Ou sofre o acidentado, ou sofre o que não quer resgatá-lo. Já aquele que nada sente, por não ter consciência, já está morto em vida. É como vejo.
    Besos!

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