blog do escritor yuri vieira e convidados...

Categoria: Cotidiano Page 36 of 58

Liberdade?

Ele tem flertado com a mediocridade. Passeios no shopping, sexozinho nos fins de semana, e sono, muito sono. Logo estará vendo televisão. Tudo por causa de — vocês sabem — uma dessas mulheres de ancas largas e gestos delicados. Ela já sabe os nomes que vai dar aos filhos. Ele ainda quer escrever um livro. Mas alguma coisa no seu corpo, algo além da queda de cabelos, vai conciliando o futuro com uma gravata e uma carteira assinada. Os sonhos que restam vão morrendo a cada orgasmo. Aos poucos ele vai descobrindo que nunca quis ser livre. Queria apenas alguém com quem dividir a cela. As mesmas paredes que antes o oprimiam formam agora um refúgio contra a desordem cansativa do mundo. E desde que a doce morena permaneça ali dentro, desde que ela o envolva nos seus braços quentes e macios, desde que ela sorria brancura e morda prazer, aquele espaço exíguo não será mais uma prisão, mas simplesmente o seu lar. Para que ser livre, se a busca terminou? Uma mulher para dividir a cama, uma janela para olhar as estrelas, uma madrugada para escrever versos medíocres, eis a súbita descoberta: tudo isso é muito melhor que a liberdade.

De lupo et cane

Acalorada discussão tomou conta do fim-do-mundo nessas últimas semanas! “Você é contra ou a favor do microchip compulsório em todos os cachorros da Nova Zelândia?”, é a pergunta do momento!

Além das despesas enormes com comida, vacinas e veterinários, os donos de cachorros ainda desembolsam cerca de NZ$ 50,00 (uns 67 reais) anuais com a licença para seus “melhores amigos” (o sentido da expressão é quase literal por aqui!).

O problema começou depois que uma menina de sete anos foi violentamente atacada em 2003 e o Governo instituiu o uso compulsório de microchip para monitorar todos os cães da Nova Zelândia. Assim, todos os animais registrados a partir de julho deste ano deverão ser microchipados (desculpem-me, mas não resisti ao termo novo!), a um custo extra de NZ$45,00 (60 reais). Mas, tirando as sérias restrições observadas pelos representantes dos direitos dos animais, qual o problema disso?

Morreu Stanislaw Lem

Morreu o escritor Stanislaw Lem, autor de Solaris, adaptado para o cinema primeiro por Andrei Tarkovski e mais tarde por Steven Soderbergh. (Passei a bola pro Paulo, que leu Solaris, mas como ele não escreveu nada…)

Bird Flu

A neblina e a chuvinha fria atrapalha chegar até a caixa do correio. Droga, jornal, carta, tudo molhado! E não veio nada do Brasil…Raios duplos!

Já com um café na mão, chama minha atenção um envelope verde com letras púrpura gritando “Getting ready for a flu pandemic”!! Já ia jogar na pilha de spam quando vi o timbre do Ministério da Saúde. Hum, melhor abrir!

Dentro do envelope, uma adesivo de geladeira com telefones úteis, um folheto explicativo muito colorido e uma carta polida, discreta, mas muito direta do Diretor de Saúde Pública.

No panfleto, explicações sobre o que é uma “influenza pandemic”; porque o vírus H5N1 pode representar perigo para os humanos; como fazer seu “plano de emergência”! Coisa engraçada isso! Não, não é risível a preparação para uma catástrofe, me intrigou a forma quase “familiar” com que tratam os desastres por aqui. Ah, e tudo em muitas cores e desenhinhos!

Tina Bell Vance


Nada mais a fazer num domingo de inverno no fim-do-mundo que vagar pela internet. Foi assim que descobri a Tina Bell Vance, uma americana meio funesta, mas terrivelmente criativa! As suas fotos e imagens digitalizadas são de uma tristeza tão “atraente”! Observo atentamente uma a uma – coisa difícil para alguém tão dispersa como eu, ainda mais quando olha para uma tela de computador!

Tudo bem! Num dia quente e ensolarado do Planalto Central do Brasil talvez não ofereçam tanto “perigo” aos olhos, mas hoje, aqui, essas figuras fazem todo sentido…

Sobre abortos, almoços e escolhas

Nunca tive em meu ventre nada mais importante que meu almoço.

Pouco tempo atrás, no Estadão, a editoria em que eu trabalhava publicava os temas relacionados ao aborto. Sem exceção, toda reportagem era seguida de cartas e e-mails. O leitor padrão do jornal não é exatamente liberal em relação a comportamentos. Ou seja, as cartas normalmente criticavam a cobertura ou apenas o fato de se dar espaço ao tema.

A editoria era composta por maioria de mulheres. Grandes mulheres, ótimas profissionais. Mas, mesmo na busca utópica pelo debate igualitário (e a maioria o procurava), a cobertura tendia para certo lado, inconscientemente ou não — não sou tão ingênuo; já tive de podar asinhas de repórteres.

O fato é que essa história do almoço me incomodava. Melhor: me incomoda. O que diabos eu sei?

O Estado ágil ou Esses cornos do inferno

Em janeiro, fiz um trabalho para o Governo. Não, uma macumba não. Escrevi um texto de 180 páginas para um processo de discussão. Evidentemente, como seria de se esperar, ainda não vi um centavo do merecido pagamento e sei que mais alguns meses se passarão antes que eu receba qualquer coisa. Sem contar a possibilidade real de não receber nada, em se tratando de ano eleitoral e de muitas mudanças nos cargos de comando que acontecerão doravante. Há alguma probabilidade de que um neo-poderoso olhe com escárnio para os valores e o propósito e engavete meu processo. Mais ainda, para receber preciso provindeciar nada menos que 15 documentos, entre eles seis certidões diferentes, o que me tem consumido boa fatia de tempo há algumas semanas. Tudo isso para, no final, o Palocci ainda ficar com um quinto do que ganhei.

anencéfalos & índios nazistas

Nãonãonão… Vamos esclarecer as coisas… Lá vem você com a alma e o nazismo… Eu já disse: ser a favor ou contra o aborto é uma coisa, a favor ou contra a legalização é outra! A questâo nâo é um ponto de vista pessoal sobre o aborto em si mas de ter a liberdade de escolher! Essa controvérsia se o camarão tem alma ou não deveria surgir no meio de uma discussâo sobre a legislaçâo… cadê a divisâo entre estado e igreja? Quero a liberdade de ser ateu, de acreditar que nem eu,nem o camarâo, nem o respeitàvel pùblico, ninguém tem alma!

A questão é de saúde pública! Vamos continuar tapando o sol com peneira, apoiando a utilização de agulhas de tricô pra livrar as mães recalcitrantes dos fetos indesejados ou vamos estabelecer uma estrutura médico-legal pra tratar o problema? Afinal, o aborto não vai parar de existir porque a gente proíbe ele, ou porque a gente decide que feto tem alma. Temos que encarar essa questâo sériamente e de uma vez por todas!

Eu curto trance

Já que o Paulo assumiu que é liberal democrata e o Pedro que é flamenguista, eu também assumo: sou raver, eu curto mesmo é trance, psytrance, goatrance et cetera et al. Podem perguntar ao Bruno Tolentino, que também morou lá na Hilda Hilst. Ele ficava louco com os meus CDs. Aliás, fui à minha primeira rave em 1996, em Maresias-SP, quando então conheci e fiz amizade com o DJ Rica Amaral (organizador da XXXperience, na época ainda um odontólogo que implantava diamantes nos dentes das menininhas), sou bróder do DJ Swarup de Brasília, cruzei mil vezes com o sitarista Alberto Marsicano, com o Edgard Scandurra (aliás, já dormimos um ao lado do outro – ele com a namorada dele, eu com a minha, claro – numa casa de praia mutcho loca), sem falar nos meus bróders Dante, que fotografou ene raves, André e Lisa Ismael, da Rave On. De lá pra cá já fui a montes de raves, talvez umas quarenta (umas 30 só entre 96 e 98), o que é pouco se vc distribuir a diferença pelos últimos sete anos. (Na verdade, faz uns dois anos que não vou a uma festa dessas, neguinho perdeu o rumo da brincadeira, a coisa literalmente vulgarizou. Boas raves são essas para 200, 300, no máximo 800 pessoas. Boas eram as raves “secretas”, apenas para os iniciados. Mas ainda voltarei.) Enfim, se para meditar eu ouço Bach, Maller, Sainte-Colombe, Villa-Lobos, Ravi Shankar e Miles, eu só consigo escrever mesmo é com trance, esse som que abre um túnel a partir do terceiro olho, estendendo todo um caminho a ser percorrido em direção ao infinito. Pronto, confessei!

Como amostra, eis uma mixagem que fiz no Audacity de duas músicas que costumo ouvir ao escrever (se não estiver escrevendo, dance, isto não é música de se ouvir parado):

    [audio:http://audio.karaloka.net/audio/para_escrever.mp3]

Sobre raves leia ainda este post.

Sobre o aborto e a jaca

Cada dia que passa tenho mais certeza: há uma conspiração dos meus amigos no que se refere a “temas ideais para estrear no Garganta”. Fico paranoicamente imaginando o troca-troca de emails: “E aí? Qual o melhor assunto e a melhor abordagem para atazanar o Yuri?” Deve ser isso, penso cá comigo, embora eu seja o único a conhecer todos os colaboradores. Porque você, Tulio, mirou e acertou a jaca muito em cheio para ser mera coincidência. Há de ser nada mais nada menos que um complô da Kaos contra este site. Mas vamos lá, bróder, seu artigo pede a intervenção do meu lado Ombundasman.

Na minha singela opinião, a questão da lei sobre o aborto, no fundo no fundo, é tão somente uma questão de crença e de honestidade intelectual. E me refiro não apenas à crença dos religiosos que o combatem, mas também à daqueles que acreditam completamente, que têm plena fé, de que a vida não é senão um amontoado, dos mais complexos, de reações físico-químicas. Convenhamos, pois, para facilitar a discussão, que todo o espectro de convicções a respeito da vida está limitada por estes dois pontos: o da fé absoluta na vida após a morte, isto é, o da fé na existência do espírito e, no lado oposto, o da fé total na cessação de toda a vida após a morte, da fé unicamente na matéria e no “nada psíquico” que procede à entropia dela (isto é, à entropia do organismo material sem vida).

Assim, dizer que é “burrice” não apoiar a plena legalização do aborto é uma profissão de fé na total independência da matéria a qualquer instância além e acima dela. Logo, segundo você, Tulio, eliminar um feto é menos chato do que eliminar um camarão. O problema é: como você, como um cientista ou um médico abortista pode ter certeza disto? Por acaso foi decretado pela ONU que todos os mistérios além do céu e da Terra foram já esclarecidos por nossa (vã?) filosofia? Ou por nossa ciência? Eu não li esse decreto. O físico Max Planck dizia que, para a religião, Deus está no começo, para a ciência, no fim. Ele jamais seria arrogante a ponto de afirmar, graças a um punhado de testes de laboratório, que Deus não existe. Seus colegas Werner Heisenberg e Niels Bohr — segundo relato do próprio Heisenberg (“Viagem aos centros da Terra”, Vintila Horia) — não questionavam em suas discussões privadas se Deus existia ou não, mas sim se ele era ou não um Deus pessoal, isto é, uma Personalidade Divina. (O primeiro acreditava que sim, o segundo, que não.) Você agora vai me perguntar: mas o que tem todo esse papo a ver com aborto? Ora, o fato de que, segundo a Palavra, Deus é Espírito e a própria Vida da nossa alma. Em outras palavras: um feto tem alma(psiquê)?

Bem, caso você me diga que um feto não tem alma, eu lhe direi: prove. Você me dirá: “então prove você o contrário, prove que ele tem uma alma, que há nele espírito.” Infelizmente, meu caro, o problema que você propôs não é este, mas o da legalização do aborto uma vez que alguns fetos não passam, segundo suas palavras, de “carniça”, de “cadáver de bebê” e nhacas do gênero. Para tanto, você se baseia no fato de que os tais são anencéfalos — e não “acéfalos”, o que é muuuuito diferente. Mas e o caso daquele figura que, após um exame médico, descobriu que era ele mesmo um “anencéfalo”? Isso é verdade. E o cara não se parecia com o Jabba The Hutt. Era simplesmente um estudante universitário de matemática, com QI 126, cujo cérebro não passava duma camada de 1 milímetro de espessura a cobrir o topo da sua coluna vertebral. Sim, ele tinha hidrocefalia. Mas poderia ser um colega seu de faculdade. Ou um feto abortado.

Observe que não estou anatematizando: “Deus existe e vai condenar todos os abortistas!!” Não. Estou apenas seguindo os preceitos do direito, segundo o qual “todos são inocentes [inclusive da acusação de serem uma carniça ou um camarão] até prova em contrário”. Doutro modo seria uma condenação sumária e injusta.

O polêmico biólogo Rupert sheldrake tem uma teoria das mais interessantes: o cérebro não é um “produtor” da mente, mas um receptor dela. O que explicaria o caso do estudante de matemática e de vários outros, haja vista tal caso não ser considerado uma exceção. (Veja o artigo citado.) Nem preciso recorrer ao Livro de Urântia — escrito nos anos 1930 — para apoiar essa mesma tese, uma vez que ele afirma categoricamente ser de fato o cérebro um receptor da mente. Trocando em miúdos: há a possibilidade de que mesmo um feto anencéfalo tenha uma alma, se é que está no cérebro — e portanto na mente — o misterioso elo do corpo com o espírito. (Descartes acreditava que a conexão se dava através da glândula pineal.)

Mas depois você se entrega e mostra que sua preocupação com o cérebro dos fetos não tem conexão com a possibilidade de eles terem mente, psique ou alma. Sim, você não questiona em momento algum se o sistema nervoso central tem algo a ver com alma. Porque você também defende o aborto de vítimas de estupro. Embriões que resultam de estupros não são de modo algum necessariamente anencéfalos. Claro, eu jamais afirmaria não ser um fardo o tornar-se mãe do filho dum estuprador. A princípio, deve ser horrível. Mas e depois? Quem irá explicar (ou negar) os mistérios da maternidade e do “amor de mãe”? Porque não há razão para condenar uma criança pelo crime do pai. A não ser que você a considere um camarão e não uma criança. E daí voltamos ao início.

Já dizia o Riobaldo: “Viver é muito perigoso”. Sim, já temos idade para saber (este é um blog balzaquiano): viver é arriscado. Quase toda loucura oriunda de intelectuais supostamente bondosos, oriunda dessa gente que realmente parece preocupada com essas pobres moças que não terão como alimentar o bebê, não vem senão dessa mania de querer tirar o caráter acidental do mundo. Quem está na chuva, está fadado a se molhar. Eu mesmo demorei muito tempo para aprender isso, talvez tempo demais. Não há desculpa para a eliminação duma criança. O bem-estar da mãe? O conforto dela? Extirpar o objeto para que os olhos não o vejam e o coração não o sinta? Isto tudo é covardia. Mesmo a possibilidade da morte da mãe, para uma mãe que é mãe por inteiro, não é desculpa. “Não há amor maior do que o daquele que dá a vida pela de seu amigo”. Se é assim quanto ao amigo, imagine então quanto ao filho. Estamos aqui para saber se temos “moral”, saca?

Quanto a fazer como os índios, me lembrei do caso contado pelo Pedro Novaes. Há um povo aí cujo costume é o pai matar um dos filhos gêmeos: só pode haver um. O índio que o Pedro conhece fugiu da tribo, exilou-se. Preferiu perder toda a tribo a perder um de seus filhos. Será que, para esses índios em particular, quando nascem gêmeos, há apenas uma alma a ser usada por um deles? Vá até lá e prove para eles que não é verdade. “Ah, tudo é relativo, seria etnocentrismo dizer para que acreditem em outra coisa.” Tá bom, diga isso pra consciência desse índio que preferiu morrer socialmente a matar um de seus filhos. Se há espírito, ele só pode ser universal.

Na verdade, esse fazer “como os índios” a que você se refere, se chama “eugenia negativa”. A princípio, a eugenia parece algo muito bom, afinal, trata-se do melhoramento da raça, da espécie. E eu mesmo concordo com ela. Mas você, meu caro Tulio, está falando em termos de eugenia negativa, isto é, está defendendo a eliminação dos “incapazes”, dos “defeituosos”, dos “deformados”, dos “Jabba de Hutts”. Mais um pulinho e chega na eliminação dos feios, dos estrábicos, dos orelhudos, dos futuros carecas, dos narigudos… Narigudos? Daqui a pouco você falará em eliminar judeus. Isso é nazismo, meu amigo. Não vejo nada de mais em apoiar a eugenia positiva, principalmente junto às mulheres: “meninas, não se casem com homens burros, estúpidos, horrorosos, grosseiros, violentos, etc.” Ninguém sai morto disso. Tampouco sou contra selecionar, in vitro, um óvulo e um espermatozóide supostamente perfeitos para posterior fertilização. Mas esse seu “fazer como os índios” é crime e nada mais.

Em suma, por que digo que a legalização do aborto é uma questão de crença e honestidade intelectual? Ora, porque qualquer juiz, se intelectualmente honesto, ainda que não tenha provas conclusivas de que um feto é “gente”, optará pela “dúvida razoável” e decidirá que ele deve permanecer vivo. Se autorizar a execução, é um crente — um crente do nada, um fiel da morte, um mero niilista. Todo julgamento deve, ainda que não alcance a verdade, esforçar-se por buscar sua direção, o seu sentido.

Agora tire o pé da jaca e vá se limpar, Tulio. (Estamos esperando por suas animações e desenhos.)
Abração
O eDitador
(agora também na versão Ombundasman)

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