Pelo horário do post vocês já devem imaginar que comi horrores e não consigo dormir nesta madrugada de natal. Então, aqui vai um post cheio de pernil, salada com pesto, arroz com castanhas e trufa (que sobremesa maravilhosa!).
Natal é clima. Natal é família. Natal é surpresa. Este ano ganhei dois presentes incríveis. O primeiro foi da minha esposa, Adriana (um beijo, meu bem). Ela me deu o livro “A cidade e a infância” do escritor português José Luandino Vieira. Estou lendo e adorando. Depois comento mais.
Já o segundo presente veio num e-mail inesperado.
Comecei a dar aulas por impulso, obedecendo a um prazer bem próprio e egoista: eu gostava de conversar com os outros sobre o que eu lia ou estudava, e gostava também de explicar-lhes como eu me sentia ao ler e estudar o que eu lia e estudava. Na verdade eu não me importava muito com o impacto do que eu falava nas outras pessoas. Dava aulas porque me sentia bem fazendo isso. Claro, eu tive alguns professores geniais, dos quais ainda me lembro com muito carinho (Udo, Luis Cláudio, Jordino, Adriano, etc.), mas nunca havia atinado para a intensidade deste tipo especial de relacionamento. Como o Pedro, minhas amizades sempre constituiram laços intelectuais e emocionais muito mais fortes. Meus amigos mudaram minha vida muito mais do que meus professores.
Recebi, ontem, este e-mail de uma ex-aluna da Alfa. Era uma menina meio sonolenta e emsimesmada. Não se saia muito bem nas avaliações e nem participava ativamente das aulas. Parecia meio deslocada em sala, chegava sempre atrasada e me olhava com um ar entre o desprezo e o enfado, pelo menos para mim. Enfim, era uma aluna mediana. Lembro-me dela porque fui convidado como avaliador para sua banca de TCC (trabalho de conclusão de curso). Sinceramente nem me lembro de qual foi o título do seu trabalho – ela se formou em 2005.
Na carta ela diz coisas como “Na primeira aula que assisti na turma de jornalismo da Faculdade Alfa, no segundo semestre de 2001, um professor de cabelos longos, anelados, falava sobre a responsabilidade do jornalista no que ele chamava de “construção da realidade”. Fiquei maravilhada. Até então, não havia experimentado o prazer de assistir a uma aula, do inicio ao fim, sem “piscar os olhos”.
Ou então “Na verdade, eu não gostava de ser eu. No início, o que eu mais gostava era de assistir as aulas desse professor de cabelos compridos. Ele era tão jovem, tão inteligente, tão brilhante. Eu o admirava. Eu o amava. Queria ser notada por ele. Queria merecer sua admiração. Queria retribuí-lo pelo prazer do conhecimento que despertara em mim“.
Era pra eu ficar envaidecido, não é? Só que no seu TCC eu não lhe dei nota 10 – eu, especificamente, porque sua orientadora queria lhe dar 10. Nem me importei com o significado da nota para a garota. Por princípio não avalio pessoas, procuro avaliar a obra apenas – a única evidência objetiva que possuo. Pois é, ao final do e-mail a garota desabafou: Foi nessa fase, já no final do curso, que vi na monografia a única possibilidade de fazer algo que eu realmente me orgulhasse. Na verdade, eu queria meu estimado professor pra me orientar no trabalho, não deu. Mas, tudo bem, trabalhei duro ao lado de pessoas maravilhosas, que me apoiaram e me ensinaram muito… Eu queria, mais uma vez, movida pela vaidade, provar pra todo mundo, o quanto eu era boa. Não medi esforços pra fazer um trabalho nota 10… Virei noites a fio. Eu sonhava com um 10 pra esfregar na cara do mundo. Pra eu me sentir 10.
Sacanagem não é? Ela, então, arremata: Professor, hoje eu entendo: a vaidade era minha. Quando percebi (demorou alguns meses), tive uma profunda vergonha do que fiz. Da maneira ridícula como chorei ao telefone, fazendo chantagem emocional… Achei, então, que não era mais digna do seu respeito e decidi esquece-lo para sempre. Não consegui. Agora, não me importa a nota que você dará para este e-mail. Fiz o que tinha de fazer, da forma mais digna e sincera que pude. Sinto-me livre.
Que coisa maravilhosa e perigosa é ser professor! Havia me esquecido completamente. Tão acostumado eu fiquei com as colas e os plágios, com a preguiça intelectual e com essa maldita estupidez democraticamente distribuída entre as idades e os sexos, que me esqueci do principal: o vínculo humano pressuposto no ato de ensinar. Ela realmente havia me ligado chorando, tentando explicar como aquele ponto (ou pontos) significou a mais avassaladora e sombria derrota que ela jamais sofrera. Fiz ouvidos moucos, não me movi.
Sabe, eu fico feliz da garota se ver, finalmente, livre de mim. Também eu devo aprender a me esquecer.
Feliz Natal