O Garganta de Fogo

blog do escritor yuri vieira e convidados...

10 anos sem Paulo Francis

O Digestivo Cultural vem publicando uma série de artigos sobre Paulo Francis, que morreu a 4 de Fevereiro de 1997. (A Hilda Hilst morreu a 4 de Fevereiro de 2004.) Eu o admirava muito, li um de seus livros e acompanhei por anos suas colunas. Sua presença no Manhattan Connection era impagável. Mas eu só quero mesmo ressaltar estes dois trechos extraídos de textos dele:

“Tudo menos o Lula. Se um dia ele virar presidente vai haver uma guerra civil. O PT é o maior atraso de vida que já houve na política. Durante anos fiz vista grossa às implausibilidades e desconversas da esquerda. A melhor propaganda anticomunista é deixar os comunistas falarem.”

“Para encontrarmos rivais e superiores a Machado [de Assis] temos que ler os russos, alguns franceses e ingleses, estes do século 19 e Proust. É isso aí. Mas o mistério supremo, que Susan e Victor desconhecem, é como o autor do soporífero Helena escreveu Dom Casmurro e Memórias Póstumas. Se há alguma biografia crítica que explique, desconheço. Claro, se Machado fosse americano, sairia uma biografia “definitiva” sobre ele por ano, milhares de ensaios de todos os tipos. Imaginem, um mulato, casado com uma branca, que se fingia de branco, que ‘brownosed’ alguém para ser funcionário público. Tenho até a quase certeza de que o veredito seria contra ele, pelas modas bocós da época do asno, que é como chamarei o advento de Lula. Afinal, Machado rejeitou sua cor e tinha 50 anos, diz Susan, quando foi proclamada a emancipação. Seu Machado, onde está o orgulho negro, o poder negro? É facílimo compará-lo a Flaubert ou a Turguenev (melhor do que). E ninguém mais europeizado do que Machado, sua obra é uma recusa só do que seria chamado Terceiro Mundo e suas tolices e pretensões. E, no entanto, é o nosso maior escritor com exceção de Euclides da Cunha, que é de primeiro time. E Euclides era também modernizador. Falando nisso, a bichinha, aquela, Almodóvar, disse que Gabriel García Márquez não é cinemático. Nunca tinha pensado nisso e agora que penso, concordo. Machado também não é, acho como Proust.”

Alteridade

Uma rapidinha com Guimarães Rosa para aplacar o calor infernal de fim de dia no Planalto Central e o calor geral desta vida abafada:

“Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba.”

(Do Grande Sertão Veredas).

O hippie reacionário

Eu sempre dou muita risada ao ver o Erik Cartman, o gordinho do South Park, xingando alguém de hippie. (Isso sempre me lembra uma ex-namorada que, ao passear por feiras de artesanato, costumava reclamar: “ai, que cheiro de hippie”.) O que eu nunca imaginei é que alguém chegaria um dia a me chamar – sim, a mim, limpinho e cheiroso – de “hippie reacionário”. Pois é, isso rolou.

Como roteirista, fui apresentado a uma figura que pretende dirigir uma adaptação livre para cinema do Fausto, de Goethe. Conversamos por algum tempo sobre o livro e, ao tratarmos do final, ela me deixou claro que não quer nada semelhante a uma “redenção” do protagonista, que o cara tem é de se foder de modo absoluto, como na “vida real”. “Então não é Fausto”, eu disse. E ela me respondeu que, “como marxista”, não acredita nessas bobagens tipo “redenção”, “culpa cristã”, “alma imortal”, “pecado” e coisas do gênero. Eu ri, claro. E discordei. Pra quê… Iniciou-se um daqueles debates infrutíferos, nos quais falamos com as paredes. (Imagino que isso tem a ver com a mania dos dirigentes marxistas de acabar com as discussões no paredão.) Coletivo pra lá, indivíduo pra cá, eternidade pra cá, História pra lá e assim por diante. Eu a compreendia, juro, mas a recíproca não parecia verdadeira – ela estava indignada! A figura, para completar, ainda é professora voluntária de literatura num acampamento do MST, onde, apesar da eterna desconfiança que os sem-terra mantêm para com pessoas de fora do movimento, e a despeito das “origens burguesas” dela, esforçam-se por aceitá-la. E ela entoava isso como se o fato de ter nascido numa família classe-média fosse… um pecado! Ficou muito claro que, em meio deles, ela se vê tão deslocada quanto uma menina pobre entre as patricinhas de Beverly Hills. E, tal como essa hipotética menina, “sabe” que a culpa dessa, digamos, ausência de comunhão é apenas dela, uma mera aprendiz de revolucionária que se põe feliz como um cachorrinho cada vez que um camponês (isto é, um pobre! um proletário! um membro real do povo!) lhe dá atenção. Mas o mais incrível mesmo era vê-la defender aquela gente que, em vista de seu próprio depoimento, jamais colocaria a mão no fogo por uma “burguesa”. Afinal, ela faz parte da classe injusta e eles, da classe dos justos, uma turma que, antes das sete da manhã, se reune para berrar slogans revolucionários e dar gritos de guerra. (Segundo o documentário do João Salles, até o Lula ficou amedrontado ao presenciar isso.)

Conversa vai, conversa vem, insisti num final com a redenção de Fausto. Ela achava isso “ultrapassado” (!!), como se algo que dependesse da eternidade fosse condicionado pelo tempo. Mas explicar isto era inútil. “Ora”, repliquei, “até o Pulp Fiction do moderníssimo Tarantino, um filme de 1994, tem redenção e, de lá pra cá, ainda não conseguiram, nem mesmo o próprio Tarantino, rodar uma tragicomédia que fosse além desta, tanto em forma quanto em conteúdo”. E passei a descrever o início da conversão de Jules, capanga do Marsellus, que acreditava piamente não ter sido baleado graças a um milagre divino. E entrei, pois, a discorrer sobre fé, demostrando que a redenção de Jules foi comprovada por sua atitude corajosa e ponderada na parte final do filme.

Ela arregalou os olhos: “Yuri, você é um dos caras mais loucos que já conheci!”

“Ah, é? E por quê?”

“Cara, você é um hippie reacionário!!”

“Um hippie reacionário?!”, e desatei a rir. “Como assim?”

“Bom, segundo me disseram, você não tem onde cair morto, tá desempregado, não é mais empresário, vive de bicos “artístico-culturais”, seu pai é aposentado (ou seja, não é rico), você não tem diploma, nem sequer tem dinheiro pra ir ao cinema e tomar um chope… Você é praticamente um hippie, cara! Só que cheio de idéias anti-progressistas, conservadoras, capitalistas, liberais, religiosas, enfim, um autêntico reacionário.”

De fato, diante dela, eu era um escândalo a abalar sua fé marxista. Como era possível existir alguém cujas idéias e princípios não representavam a ideologia de sua suposta classe social? Se ela estivesse em meu lugar, certamente já teria se mudado para um acampamento do MST. Ela me encarava embasbacada. Não conseguia engolir o fato de que, se eu estava na merda financeira, isto se dava simplesmente por incapacidade e incompetência minhas – aliadas, é claro, à rapinagem e corrupção estatais (meu estúdio quebrou por ação da “máfia dos fiscais” de São Paulo) – e não por culpa dos “ianques”, dos “capitalistas exploradores” e dos “banqueiros bandidos”. Já eu não parava de pensar que “hippie reacionário” teria sido um ótimo nome para este blog…

Beira-Mar usa esferográfica?

Está nos jornais de hoje. Reproduzo trecho da Folha:

Para ouvir por apenas duas horas, ontem, seis testemunhas de acusação num processo do qual é réu na Justiça Federal do Rio, o traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, custou aos cofres públicos mais de R$ 50 mil, segundo cálculos da Fenapef (Federação Nacional de Policiais Federais).

Para o presidente da OAB, Luiz Flávio Borges D’Urso, presos como Beira-Mar ou qualquer outro não devem ser ouvidos por videoconferência, pois têm o direito de serem ouvidos na presença de um juiz.

O fato é que a videoconferência não está prevista em lei. Como nós, brasileiros, precisamos de uma “bíblia” que nos guie — neste caso, o Código de Processo Penal —, abre-se um vácuo estranho. Como não está previsto em lei, não é legal nem ilegal.

Quer outro vácuo estranho nas regras brasileiras? Apenas há uns 20 dias, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que prevê punição para presos flagrados com aparelhos celulares. Ele ainda precisa passar pelo Senado. Isto quer dizer que, quando um detento é pego na cela com um celular, que ele usa para aplicar o golpe do falso seqüestro que tanto tem assustado as pessoas atualmente, nada lhe acontece ainda.

O curioso é que estamos em 2007. Em 2001, houve em São Paulo um episódio de que você certamente se lembrará. Em fevereiro daquele ano, presos de 29 presídios paulistas se amotinaram ao mesmo tempo — chamaram isso de megarrebelião; foi neste episódio que, para o público em geral, surgiu o PCC (Primeiro Comando da Capital), facção que articulou o movimento.

E como os presos conseguiram articular esse grande motim? [Abro o colchete para pedir a você, leitor, desculpas antecipadamente, pois, naturalmente, você sabe a resposta à pergunta. Mas prefiro respondê-la o mais claramente possível. Vá que um deputado qualquer leia este texto…] Resposta: celular.

Bem, passaram-se seis anos. E até hoje um detento não pode ser punido por, do presídio, articular crimes contra os que estão do lado de fora utilizando um aparelhinho que nem deveria estar lá dentro — mas está por conta da corrupção do sistema.

Alguém aí consegue me explicar isso? Por favor, possível leitor deputado, alguma explicação?

O resultado disso é que aquele movimento de 2001 hoje é chamado de a primeira megarrebelião. Sabe por quê? Porque em maio passado houve uma segunda, ainda maior, que sacudiu 74 unidades prisionais e incluiu atentados terroristas que ceifaram vidas e espalharam o terror pela cidade mais rica do país. E o que os presos usaram para planejá-la? [Amigo leitor, me desculpe novamente, ok? Espero que você entenda.] Resposta: celular.

Mas se estamos em março e a segunda megarrebelião foi em maio, por que um preso ainda não pode ser punido se for pego com um telefone na cela? Alguém sabe me explicar? Possível leitor deputado, algo a dizer?

Voltando ao primeiro vácuo estranho, aquele a que me referi lá em cima sobre o Código de Processo Penal, talvez possamos ter, não uma explicação, mas uma leve idéia de por que algo assim acontece no Brasil.

Sabe por que o Código de Processo Penal não prevê a videoconferência como uma forma segura e econômica para se ouvir presos de alta periculosidade? Na verdade, ele não prevê nem o computador. Ele é de 1941 e ao longo desse período poucas alterações sofreu. Naquela época, uma pequena invenção de um húngaro chamado Laszlo Biro começava a encantar as pessoas — e, suponho, os legisladores — mundo afora: a caneta esferográfica.

Como diz o Yuri, somos mesmo um país de catarrentos.

O Garganta de Fogo em erupção

Eu certamente já esclareci isto em algum post, mas, se ainda não o fiz, faço-o agora: este blog deve seu nome ao vulcão equatoriano Tungurahua (do quechua Garganta de fogo), de 5060 metros, que a duras penas escalei anos atrás, antes que reiniciasse a série de erupções em que se meteu a partir de 1999. (Veja as fotos no meu perfil.) A foto abaixo foi eleita a foto do dia pela Folha de São Paulo. (Isso é o que eu chamo de propaganda subliminar…) Que Deus olhe pelo povo de Baños e de Ambato, Província de Tungurahua, e pela família Naranjo, minha família de intercâmbio, que vive próxima ao vulcão Cotopaxi (5890m), alguns quilômetros mais ao norte, que também escalei, e que ainda é ativo. Viver à base dum vulcão é como viver coletivamente sob a espada de Dâmocles.

tungurahua3.jpg

Authors@Google: Neil Gaiman

A Google tem organizado palestras com escritores convidados no campus da empresa, divulgando-as em seguida através do Google Video. Eis a palestra do Neil Gaiman, autor de Sandman, aliás, único trabalho dele com que tomei contato, por insistência de amigos. Entre outros, gostei do trecho onde conta que, numa reunião literária, alguém lhe indagou o que escrevia. “Comics“, ele respondeu, para desgosto do interlocutor que reagiu com uma careta. “Sei… Algo conhecido?” “Bom, Sandman, etc. etc.” E o cara: “Mas então você é Neil Gaiman!” “Sim, eu mesmo.” “Mas, meu amigo”, tornou o outro, “você não escreve comics, você escreve graphic novels…” E Gaiman comenta com a platéia: “Me senti uma puta sendo chamada de garota de programa…” (A tradução é minha, perdoe qualquer equívoco.)


.

Nelson Piquet e Lula

Em criança, curti muito o Nelson Piquet. Acabada a corrida de F1, costumava correr até a rua com meu carrinho de rolimã. Também achava ótimo quando ele ganhava o famigerado Troféu Limão, que premiava a língua mais ferina dentre os pilotos. Língua esta que se tornou lendária e que continua – graças a Deus – em plena atividade. Ano passado, durante uma homenagem do Capacete de Ouro às famílias de corredores, o apresentador Otávio Mesquita perguntou a Pedro Piquet, filho caçula e piloto de kart, se seu pai ainda falava muito palavrão.

“Ah, ele fala na frente da TV, quando o Lula tá falando.”

Via True Outspeak:

“Permaneço um racionalista”

Seria psicanalítico demais, depois de postar o texto do Graciliano, citar o José Guilherme Merquior? Acho que não. Ter consciência da crítica do Graça – é… sou íntimo dos meus heróis – aos “intelectuais de miolo mole” faz da minha citação algo mais do que um ato falho freudiano (falho exatamente quando inconsciente). Faz dela justamente uma filiação, apesar do Merquior nada ter a ver com meus devaneios de “sumo pontífice em brochura”. Ser amigo dos mortos tem esta vantagem. Além disso, ela diz muito sobre minha posição intelectual e pessoal a respeito do meu último debate travado no blog.

Doa a quem doer, permaneço um racionalista – embora firmemente convencido de que o único racionalismo consequente é o que se propõe, não a violentar o mundo em nome de seus esquemas, mas a apreender em seus conceitos, sem nunca render-se ao ininteligível, sem jamais declarar o inefável, a essência de toda realidade, ainda a mais esquiva, mais obscura e mais contraditória. Somente as almas cândidas, os cegos voluntários e os contempladores do próprio umbigo não percebem e não aprovam a virilidade desta Razão; mas ela é apenas a própria e íntima razão de todo verdadeiro conhecimento humano.

Linhas Tortas

Quando comecei a escrever para o blog corri à livraria mais próxima e comprei o livro. Quem dera eu tivesse 10% da capacidade do Graciliano para a ironia fina! Desisti muito cedo de ser escritor, em alguma medida por conta do texto que segue. Foi uma porrada bem dada no meu ego.

O literato em esboço é um sujeito que tem sempre no cérebro um pactolo de idéia e que ordinariamente não tem na algibeira um vintém.

É poeta na acepção vulgar da palavra – é desocupado. Anda com a cabeça no ar, como convém a um indivíduo que faz versos. Através da fumaça branca de seu cigarro percebe vagamente alguma coisa muito brilhante e muito grande a acenar-lhe. É afoito, ri muito, gesticula em excesso, fala alto, principalmente a respeito de sua pessoa.

Eclipse na Vila

fiume45ea60c124962-web.jpg zero.jpgmenos1.jpgum.jpgdois.jpgtres.jpgcinco.jpgseis.jpgsete.jpgnove.jpgdez.jpg

Page 58 of 271

Desenvolvido em WordPress & Tema por Anders Norén