blog do escritor yuri vieira e convidados...

Autor: elv peka fluss Page 1 of 3

O fim da dúvida

No mês passado, eu sanei uma velha dúvida. E foi na prática mesmo, sem nada de teoria.

Fui ao Rio fazer um frila e, numa quarta-feira de manhã, peguei a ponte aérea de volta a São Paulo. Para poder chegar à minha poltrona, a 5a, na janela, pedi licença à passageira da 5b, a do meio, que prontamente se levantou para que eu pudesse passar. De cara, eu a reconheci, apesar de seus imensos óculos de sol.

Numa discreta blusa branca e preta, a senhora retirou um grosso livro (em inglês) de sua bolsa (Prada, deu pra ver bem) e passou a viagem lendo. Confesso que ela me deixou um pouco tenso. E se eu cometesse alguma gafe? Sei lá…

Resolvi, assim, ficar “na minha” o máximo que conseguisse. Ou seja, mal abri a boca. Acho que o “máximo” que fiz foi pedir-lhe a revista da Gol que estava no “porta-coisas” à sua frente. “Posso?”, perguntei-lhe. “Claro”, respondeu-me.

Nem aceitei a barrinha de cereal; pedi apenas água com gelo. Ela só aceitou o suco de manga. “Light”, frisou.

Daí que, chegando a São Paulo, me distraí olhando pela janela a imensidão de concreto e asfalto. Foi quando a minha antiga dúvida se resolveu.

Como não notei que o comissário me dirigia a palavra, pedido o copo já vazio, a senhora me chamou a atenção. Não disse uma palavra, na verdade. Apenas tocou meu ombro — e com certa força, não foi ligeiramente — usando dois dedos, o indicador e o do meio.

Agora já posso dizer à Débora, minha filha, que tá liberado o cutucão. Se a Gloria Kalil cutuca, nós também podemos cutucar, não?

A abobrinha beijou a lona

Bem no quarteirão em que moro, há um restaurante vegetariano que, de vez em quando, freqüento. É um lacto-vegetariano, não tão extremo como um vegan — isto é, alguns pratos têm derivados de leite.

Não tenho muito preconceito quanto a alimentos. Com exceção de berinjela, como de tudo — a comida só não pode se mexer, mas não importo se sangrar.

O problema é que perdeu um pouco a graça comer no vegetariano. Explico.

Do lado dele, bem do lado mesmo, muro com muro, tem uma padaria. Uma destas bem paulistanas, que servem quase de tudo. Tempos atrás, ela fez uma grande reforma, mudou tudo de lugar. E ampliou seu cardápio de almoço, antes restrito a lanches e PFs. Agora há um bufê: arroz, feijão, uma saladinha, farofa, batata frita. Algo assim.

Aqui em São Paulo, em qualquer lugar que tenha um bufê, seja o boteco da esquina ou o Dinho’s Place, ele é acompanhado de grelhados.

Aí que é o bicho pegou.

No vegetariano, principalmente nas mesas no corredor externo que dá pro muro da padaria, você fica comendo uma abobrinha recheada com proteína de soja ou uma almôndega de soja ao sugo, que são gostosas, é bom que se diga, mas fica sentido o cheiro na picanha na grelha da padaria. É foda de encarar. É peso leve contra peso pesado. Uma covardia.

Bonfim

Aconteceu num domingo…

Vejo a escadaria à minha frente e não posso conter o leve sorriso. É sempre assim quando volto aqui. “Mas é essa a escadaria?” Foi a pergunta que fiz a meu pai na primeira vez que aqui estive, um garoto. Estou na Igreja do Senhor do Bonfim. O tom de surpresa daquela pergunta ainda me é presente. Ainda tenho a decepção infantil — em minha imaginação, a escadaria onde ocorria a famosa lavagem, à qual eu também não compreendia, era bem mais grandiosa do que sua dúzia de degraus. Cá estou novamente a senti-la.

Débora e o moço

Aconteceu num sábado…

“Eu vou comer macarrãozinho. O que você vai comer?”

Débora tem uma boneca nos braços e olha para o homem à sua frente, que parece levemente surpreso com a pergunta.

Estamos num restaurante, esperando nosso pedido de almoço chegar. Assim que nos sentamos, Débora pediu: “Papai, vou querer macarrãozinho… (pausa)… farofinha… (pausa)… ou arrozinho”.

Pedido feito, saiu de nossa mesa e foi até a do nosso lado, não sei bem por quê. Abordou o cara, bem-vestido, com a família — mulher e dois filhos, mais velhos do que ela. Também aguardam o pedido. Ouve então a resposta.

“Vou comer casquinha de truta, salada de alcachofra e quiche de alho porró.”

Silêncio.

O homem continua sorrindo.

Silêncio.

Débora parece intrigada.

Silêncio.

“Moço, que língua você fala?”

Morte anunciada

O Fiume morreu ontem, daqui a 51 anos. Está no Quem somos aí em cima.

O pouso

Aconteceu num agosto…

Não faço idéia de que tipo era — se Boeing ou Airbus, etc. Havia na cabine, além das poltronas de piloto e co-piloto, duas outras, menores, nas quais nos abrigamos. Voltava de Buenos Aires pela Transbrasil — faz uns 10 anos já. Estava comigo um conhecido que trabalhava na finada empresa. Ele me fez a pergunta que eu não ouvia desde garoto: “Quer conhecer a cabine?”

Era noite. O tempo estava magnífico. Poucas nuvens, apenas suficientes para embelezar a vista. O comandante foi nos explicando o básico do funcionamento da aeronave, para que serviam alguns daqueles reloginhos, botões, alavancas… Não gravei muita coisa, mas foi uma conversa agradável.

O solitário almoço

Aconteceu hoje…

Vinha de Cumbica, pela Marginal (asfalto, concreto, carros, carros, carros…), já pensando em onde iria comer rapidamente. Vi um McDonald’s e quase parei. Tentei ir ao Center Norte, mas perdi a entrada da pista local e passei do shopping. Como qualquer retorno em SP leva meia hora, segui. Peguei a Tiradentes, rumo ao centro.

Aí me lembrei da Pinacoteca. Lá tem um restaurante simples, bacaninha. Está mais para um café, em estilo europeu. Parei o carro em frente da Estação da Luz — está linda, depois de ter sido restaurada para abrigar o Museu da Língua Portuguesa.

Foi assim então o meu almoço solitário. Numa mesa ao ar livre, sob as árvores do Parque da Luz — que é bem bonito, com seu jardim em estilo inglês; inaugurado em 1825, é o primeiro parque da cidade, onde a aristocracia paulistana do século 19 passeava com os filhos.

Depois de comer um prato com picanha defumada (parece estranho, mas é bom), ainda tomei um expresso apreciando os raios do sol entre as grandes árvores, as esculturas, a estação, os colegiais uniformizados voltando para casa, os velhinhos caminhando pelo parque…

Zico

[Só nos resta falar de Copa…]

Zico é o craque da minha infância. Apesar de ser vascaíno, de termos tido o Dinamite, não dava para não se encantar com aquele Flamengo. Culpa do Zico. Aquele time dos anos 80 era genial. Culpa do Zico.

Mas o Zico não foi campeão do mundo — se tivesse sido, teria hoje o cacife do Maradona, do Beckenbauer, que são mais festejados no futebol mundial. Em parte, culpa do Zico mesmo.

Em 82, tudo bem, uma falha coletiva do time e o oportunismo de um até então desconhecido Paolo tiraram aquela seleção dos sonhos do topo do mundo. Mas, em 86, naquele penalty contra a França? Culpa do Zico. Embora indiscutivelmente craque, é lembrado por seus lances maravilhosos, mas também por aquela falha terrível.

Daí que andei pensando no Zico ultimamente. A seleção brasileira, com esta coisa perigosa de favoritismo, poderá decidir a vaga no terceiro jogo, contra o Japão. Já pensou se o Zico entra pra história como o brasileiro que despachou o Brasil? Culpa do Zico?

[Texto modificado pelo autor às 23h48 de 8/6/6]

Boy’s toys

[Este é um post ligeira e inofensivamente machista]
Aconteceu num domingo…

Dirijo pela Faria Lima. Paro no semáforo na Rebouças. É um sinal demorado. Olho para o carro que pára ao meu lado. Desvio os olhos para o sinal. Vejo de novo o carro. Olho então à minha volta. Penso se não estariam filmando. Talvez fosse um comercial. Ou uma pegadinha, não sei. Mas nada vejo que comprove isso.

Volto os olhos para o carro. De novo para o sinal. De novo para o carro. No meu outro lado, minha namorada nota o que está acontecendo. Fico ligeiramente constrangido. Acho que ela também está surpresa.

“Pode olhar”, diz ela.

É, penso. A chance de isso acontecer de novo deve ser pequena. Volto os olhos para o carro. É uma Ferrari. Vermelha — vermelho-ferrari, entende? Ao volante, uma loira. No banco do passageiro, uma morena. No de trás, outra loira. São jovens. Todas bonitas. Bem bonitas. Beeemmm bonitas, quero dizer. Estão felizes. Sorriem. Gargalham.

O sinal abre. O carro parte. Parto também. Sigo o meu caminho.

“Brinquedo de menino”, diz minha namorada.

É… Quatro deles, penso.

Eu e o sem-fim

Cinco

[1][2][3][4]

Ouviu a música com espanto, à espera de sua fonte. Aguardou, quieto, ainda afastado, e ouviu o seu fim. Veio o silêncio, a expectativa. Do portal, em vez da melodia, partiam batidas ritmadas, secas. Uma a uma, mais e mais rápidas, mais e mais próximas, uma para cada vida de seu peito. Uma a uma, passo a passo, foram se aproximando até por fim pararem.

Olhos fixos à frente, o peito vivo a tornar-se tenso, viu grossos dedos tocarem o portal e em seguida os olhos brilhantes. Yuri olhou para baixo e viu as batidas.

Page 1 of 3

Desenvolvido em WordPress & Tema por Anders Norén