Ele ficou chocado quando fez a descoberta. Estava na cama, o corpo nu recebia uma brisa suave de maio. Ela tinha ido ao banheiro, não gostava de ficar com sêmen entre as pernas. Quando voltou, deitou com a cabeça sobre o peito dele, disse as palavras carinhosas que costumava dizer nessa ocasião. Falou sobre casamento, sobre a felicidade de ter encontrado a pessoa certa. Ele se perguntava se devia lhe contar a novidade — a coisa acabava de se revelar, clara e serena como um reflexo de lua. Mas sua namorada era muito bonita, ele temia perdê-la. E o pior é que ela se culparia por tudo. Buscaria o motivo nalgum lugar do seu corpo, na barriga, nas mínimas estrias, na cor do cabelo — talvez no estranho cheiro de rosas queimadas, que ela exalava principalmente depois do sexo. Ela era mulher, não podia evitar o prazer misterioso da culpa. E por isso mesmo ele resolveu se calar. Não queria correr o risco de torná-la infeliz como uma divorciada. Se nunca mais pensasse no assunto, talvez a revelação passasse despercebida. Talvez desistisse de se mostrar, e bateria em outra porta, como essas pessoas que vêm pedir para campanhas de caridade. E, de fato, protegido pela rotina, Paulo conseguiu esquecer o assunto. Sua namorada não percebeu, e ele nunca disse a ela, nem a ninguém, que não gostava de sexo.
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Diferentemente de até bem pouco tempo, eu hoje tenho grande vontade de voltar aos Estados Unidos. Este desejo acaba de receber uma boa dose de reforço com a conclusão da leitura de “In Cold Blood”, a célebre “novela de não-ficção” do mestre Truman Capote.
Evito ao máximo ler traduções de livros publicados em línguas que domino. Como já exerci o ofício de tradutor, atento para e me irrito em excesso com os erros ou escolhas equivocadas de meus colegas. Além do fato óbvio de que o estilo de um mestre como Capote só pode ser integralmente apreciado no original.
Desta forma, comprei na Livraria Cultura uma edição paperback deste best-seller logo depois de assitir ao espectacular Capote, filme que rendeu o merecido Oscar de melhor ator a Philip Seymour Hoffman, e que conta a história do envolvimento do escritor com os fatos reais que inauguraram um novo gênero literário – o que se passou a designar como “non-fiction novel” – e geraram este livro que permanece como uma das grandes obras da literatura americana: o assassinato de uma próspera família numa comunidade rural do interior do estado do Kansas.
Hoje é aniversário do poeta Stefan George que, graças a um poema de sua autoria sobre o anticristo, convenceu ao Conde von Stauffenberg, ao irmão deste e a outros oficiais nazistas de que o dito cujo carcará sanguinolento não era outro senão seu próprio líder, Adolf Hitler. Daí para a idéia de assassinato e para o ato de colocar uma bomba no bunker em que o ditador participaria de uma reunião foi um pulinho. A explosão matou um oficial, mas a grossa mesa de madeira protegeu Hitler, que sofreu apenas algumas escoriações. Todos os conspiradores foram executados.
Também é aniversário do irmão Henry David Thoreau, escritor americano, autor de Walden e do ensaio sobre a Desobediência Civil. Foi um ferrenho defensor do libertarianismo, do individualismo sadio e, certa feita, após ser preso por não pagar impostos atrasados – o cara tinha uma birra enorme com o Estado – riu-se por achar ridícula a crença dos burocratas de que aquelas grades o privariam de sua liberdade interior. (Isso me lembra um caso que li no De Gustibus sobre um velhinha americana que preferiu ser presa a pagar um imposto territorial urbano que não era usado para melhorar de forma alguma sua própria rua. Deve ser descendente do Thoreau.) Thoreau é citado no filme Sociedade dos Poetas Mortos. Aliás, sempre achei incrível o fato de que estudantes universitários prefiram o alienado do Karl Marx a esse figura genial.
Eu sei que a citação é mais que batida. Mas dificilmente a ouvimos na voz do próprio autor.
- [audio:http://www.vozesbrasileiras.com.br/html/mp3/g/g-nelson_rodrigues.mp3]
(Valeu pela dica, Aryna.)
Já escrevi algumas vezes sobre o futuro dos ideogramas chineses, que certamente conquistarão todo o mundo. (Veja este artigo e estes posts:Pão em coreano e As línguas do futuro.) O que eu não sabia é que Schopenhauer já previra o mesmo há mais de um século:
Nós desprezamos os ideogramas chineses. No entanto, como a tarefa de toda escrita é evocar conceitos mediante sinais visíveis na mente alheia, apresentar à vista, em primeiro lugar, apenas um sinal equivalente ao sinal audível e fazer com que ele se transforme no único portador do próprio conceito representa, evidentemente, um grande desvio: com isso, nossa escrita por letras é apenas um sinal do sinal. Poderíamos então nos perguntar qual vantagem teria o sinal audível em relação àquele visível, a ponto de nos fazer deixar o caminho direto da vista à mente para tomar um desvio tão grande, como o de fazer o sinal visível falar à mente alheia apenas por meio do sinal audível; enquanto seria obviamente mais simples, à maneira dos chineses, fazer do sinal visível o portador direto do conceito, e não o mero sinal do som; tanto mais que o sentido da vista é sensível a modificações ainda mais numerosas e delicadas do que o da audição e, além disso, permite que as impressões sejam dispostas uma ao lado da outra, o que as afeições da audição, por sua vez, não são capazes de fazer, pois são dadas exclusivamente no tempo. Os motivos aqui indagados poderiam ser os seguintes:
I. A Bruxa
O pentagrama tatuado nas costas, uma lua e três estrelas na mão. Ela tentava me convencer que bruxaria era coisa boa, “o contato com a natureza, a sensibilidade para as energias cósmicas, o cristianismo é que estragou tudo, com aquela moral repressora…” Eu tolerava incenso e maconha em troca de alguns orgasmos — o que um adolescente não faz movido por hormônios? Mas deuses pagãos não são eternos. Um dia foi minha paciência e veio a inquisição. Confessei meu ceticismo. Ela não tinha poderes sobrenaturais, era apenas humana, ou pior: mulher. Ultrajada, tentou se defender atacando — Nunca gozei com você! — mas isso apenas provava sua completa falta de poderes mágicos. A não ser, é claro, para a hipocrisia: nos despedimos com beijinhos formais. Quando ela bateu a porta, o ar puro voltou a fluir no meu apartamento.
II. La Mamma
Ela ficou decepcionada quando esqueci nosso aniversário. Não mandei cartão, não telefonei, mas continuei sendo o destinatário de suas palavras carinhosas: “meu amor”, “minha vida”, “razão da minha existência”. Ela não podia evitar, já que fora educada por estórias infantis e canções românticas. Quando não era a princesa, esperando que eu matasse um dragão, tornava-se mãe. “Leve agasalho”, “Não tome leite vencido”, frases até desejáveis quando uma mulher não sabe fazer outra coisa. Confesso que quase a amei, sobretudo quando dentro do seu corpo quente e molhado. Mas seus olhos mendigos pediam algo que eu não podia dar: uma promessa. Acabei por lhes dar algumas lágrimas, que, felizmente, seriam poucas. Funcionários públicos vivem à espera de mamães como essa. Eles sim, têm as promessas que elas pedem. Eu ainda tinha alguns dragões para matar.
III. É ela
Certos espíritos dificilmente admitem que uma coisa simples possa ser bela, e menos ainda que uma coisa bela é, necessariamente, simples, em nada comprometendo a sua simplicidade as operações complexas que forem necessárias para realizá-la. Ignoram que a coisa bela é simples por depuração, e não originariamente; que foi preciso eliminar todo elemento de brilho e sedução formal (coisa espetacular), como todo resíduo sentimental (coisa comovedora), para que somente o essencial permanecesse. E diante da evidente presença do essencial, não o percebendo, até mesmo fugindo a ele, o preconceituoso procura o acessório, que não interessa e foi removido. Mais pura é a obra, e mais perplexa a indagação: “Mas é somente isto? Não há mais nada?” Havia; mas o gato comeu (e ninguém viu o gato).
(Carlos Drummon de Andrade, Confissões de Minas — Caderno de Notas. In OBRA COMPLETA. Rio, Aguilar, 1964, p. 591)
Eis as três matérias, de autoria do jornalista Rogério Borges, publicadas no jornal O Popular:
Perdas e Ganhos
Escritores que publicam seus trabalhos na internet
abrem mão da renda com direito autoral em
nome da divulgação maior de seus trabalhos
“Todo escritor quer ser lido, mas também todo escritor quer ser recompensado pelo seu trabalho.” A afirmação, feita pelo escritor Yuri Vieira, condensa uma discussão que vem ganhando corpo com a proliferação na internet de blogs e livros virtuais, de acesso livre a qualquer um que esteja conectado à grande rede de computadores: a do direito autoral flexibilizado. Esses instrumentos trazidos pelas novas tecnologias têm mexido com a relação entre os autores e suas obras e deles com as editoras.
Ao publicar um texto na internet, muitos escritores deixam claro que não se importam com a reprodução daquele trabalho, desde que haja a menção à autoria, desobrigando o pagamento de direitos autorais pelas obras em questão. “Eu transformei o meu livro A Tragicomédia Acadêmica em uma obra virtual, em um e-book, e estou cadastrando o título no Google Books”, anuncia Yuri, 34 anos, que mora em Goiânia.