Sutor, ne supra crepidam! Eis um aviso longínqüo.
Eu ainda me lembro quando alguns professores de Filosofia diziam que Adam Smith estava “morto e enterrado”, que não servia nem mesmo para “calçar a mesa da sala de aula”. Qual não deve ter sido o susto dessa gente quando Ernst Tugendhat (entre outros) resgatou sua teoria dos sentimentos morais para as discussões sobre ética na contemporaneidade. Smith voltou a ser lido com novo interesse, apesar do desprezo marxista chinfrim.
Hoje topei com um texto do sempre relevante Reinaldo Azevedo cujo teor é exatamente o mesmo, embora situe-se na outra ponta do espectro ideológico. O objeto de desprezo do Reinaldo é Habermas. Seu texto comenta um artigo do filósofo alemão publicado no caderno Mais! da Folha deste domingo, diz coisas como:
Ah, o sr. Habermas está muito preocupado com o risco de os veículos caírem nas mãos de capitalistas inescrupulosos, que se interessariam apenas pelo lado espetaculoso da notícia, e nada com a função formadora da imprensa. Como exemplo negativo de jornalismo, ele cita, claro, o norte-americano.
Ou então,
Sempre achei Habermas um submarxista vulgar; não imaginava, no entanto, que pudesse ser tão ridículo.
E por aí vai. Bem, o Reinaldo pode achar o que quiser, pode até mesmo implicar com o fato do cara não gostar de Chicabom, mas está falando de orelha sobre a obra do Habermas. Em primeiro lugar porque interpretou o artigo da Folha numa chave submarxista e viu só isso. Sabem como é “what you get is what you see”. Se tivesse mais contato com a obra do filósofo perceberia a relação entre mercado e estado no contexto de uma sociologia de sistemas (baseada, principalmente, em Luhmann e Parsons), o que por si não implica um avanço estatizante, mas um equilíbrio necessário, mediado pela esfera pública – e aqui, antes que me venham encher o saco, falo do conceito como ele aparece na Teoria da Ação Comunicativa e não na Mudança Estrutural da Esfera Pública (tomar Habermas apenas por esta última seria como formar um juízo sobre Dostoiévski exclusivamente a partir de Noites Brancas).
Se fosse mais honesto (se o pathos não fosse o do desprezo) comentaria sobre a idéia de jornalismo implícita no conceito de esfera pública e de como esta esfera, uma ótima invenção liberal, constitui o verdadeiro espaço democrático numa sociedade. Nem Estado nem mercado são democráticos, mas o Estado ainda é mais permeável a uma gestão democrática – por conta, principalmente, do modelo jurídico constitucional – do que o mercado. Por outras palavras, a democracia nasce da vontade – e é preservada por esta vontade, cristalizada no sistema jurídico; “ainda há juízes em Berlim”, não é isso? – dos homens e não por geração espontânea. No limite, o mecanismo que movimenta a argumentação habermasiana é o da ação comunicativa; e o que ele propõe é uma intervenção para que o tipo de jornalismo comumente praticado na Alemanha, e associado à emergência desta esfera, seja preservado. Seu objetivo é preservar alguma racionalidade argumentativa na mídia.
Por outro lado, a característia “formativa” do jornalismo não está associada a nenhum caráter pedagógico ou tutelar da comunicação – isso é só estrabismo do Reinaldo -, mas a uma influência construtivista (essencialmente Piaget) incorporada por Habermas em suas bases epistemológicas. O jornalismo, juntamente com uma série de outros elementos, nos ajuda a construir nosso senso de realidade social. É por isso, acredito, que o Reinaldo acha tão importante combater o marxismo vagabundo de boa parte da mídia, porque isso implica mudar a maneira como as pessoas interpretam os fatos e, portanto, a maneira como veêm o mundo.
O que marca o comentário do Reinaldo é o repúdio – não a crítica – ao conceito de Comunicação do Habermas. E, claro, à tese de que o Estado, como construto humano, pode ser acionado quando julgamos que algum valor essencial escapa à lógica do mercado. Não que o mercado seja ruim ou malvado (isso Habermas não diz), apenas seu desenvolvimento – na Alemanha – vai na direção da supressão de um tipo de jornalismo que ele acredita ser essencial para a manutenção da esfera pública. Só que Habermas “culpa” o mercado pelo tipo de jornalismo indigente que se vai consolidando, enquanto Reinaldo culpa a esquerda e o marxismo. Contudo, tanto Habermas quanto Reinaldo defendem o mesmo valor fundamental: a democracia, cristalizada numa de suas instituições mais importantes – a esfera pública -, e representada pelo jornalismo argumentativo, cuja maior virtude é “não ter medo de dizer seu nome”.
Por fim, Reinaldo faz referência a um debate entre Habermas e o atual papa Bento XVI e diz que “Habermas parecia um garoto de colégio balbuciando incongruências diante de um mestre”. Ele gosta desta figura. Habermas, esforçando-se ao máximo, não consegue nem mesmo articular um discurso coerente. Diante de Ratzinger, torna-se afásico. Bem, são fogos de artifício. Eis um link para a transcrição da Folha sobre o debate dos dois.
Voltando à citação de Plínio. Não pretendo policiar os assuntos que o Reinaldo escreve em seu blog, ele tem direito aos seus erros e tem também direito de exibi-los para quem os considere acertos. Mas cabe retificar algumas opiniões frágeis ou francamente equivocadas, inspiradas, acima de tudo, pelo desprezo; uma disposição que nada tem a ver com qualquer tipo de virtude intelectual, nem mesmo com a saudável prepotência dos excelentes.