O Garganta de Fogo

blog do escritor yuri vieira e convidados...

Morre o Visconde de Sabugosa

Se você tem mais de 35 anos provavelmente assistiu, lá pelo meio da década de 80, ao Sítio do Pica-Pau Amarelo, série de TV inspirada na obra de Monteiro Lobato. Se você, além disso, era um garoto meio nerd apaixonado por tecnologia, ciência e filosofia, seu personagem preferido deve ter sido, certamente, o Visconde de Sabugosa (além, é claro, do Pedrinho, dotado de uma inteligência pragmática realmente genial).

Mas o Visconde era uma enciclopédia de erudição. Inspirado na elite científica britânica (Royal Academy) formava o par oposto com a boneca Emília, fruto da intuição pura. Eu adorava o Visconde pelo seu porte nobre, um tanto didático e professoral (para um moleque de 5ª série, perfeito) e pelo modo como acessava os problemas de modo analítico e racional. Visconde de Sabugosa foi o primeiro intelectual que conheci.

Crianças geralmente confundem ator e personagem e comigo não foi diferente. Quando, mais tarde, decidiram mudar o ator perdi o entusiasmo com a série. Estava crescendo, também. Minha memória afetiva, entretanto, plasmou a figura do personagem em André Valli. Para mim não há outro Visconde, apenas aquele feito pelo André. O original.

Diz a matéria do G1 que ele foi diagnosticado com câncer há apenas um mês. Como teria reagido Visconde? Teria procurado informações na enciclopédia, analisado a situação e partido em mais uma aventura, agora em busca de uma salvação? Como reagiu o ator? Não sei. Deve ter sido difícil. Quem dera pudéssemos apanhar uma outra espiga de milho e devolver-lhe, num passe de mágica deliciosamente anticientífico, a vida. Descance em paz, Visconde/André. As sementes que Lobato lhe colocou na boca – e para as quais você foi forma e adubo – ainda estão a germinar por aqui. Num vasto milharal…

Na natureza selvagem

Acabei de assistir ao filme do Sean Penn sobre o livro do Jon Krakauer, Into the Wild. O belo filme parte de uma premissa, para mim, equivocada. A idéia de natureza e, por tabela, de ser humano. A citação de Byron, ao início, é exemplar: There is a pleasure in the pathless woods; / There is a rapture on the lonely shore; / There is society, where none intrudes, / By the deep sea, and music in its roar; / I love not man the less, but Nature more…

Byron é um romântico e sua visão da natureza é igualmente romântica. Que um jovem de 21 anos se sentisse atraído por esta concepção é natural. É exatamente o modo como o personagem se define, um “viajante estético”. Puro Sturm und Drang. Entretanto, assim como o romantismo, Alexander Supertramp é cego para as revoluções inconscientes de sua afetividade, o verdadeiro subtexto de seu amor pela natureza.

É um filme de formação, sem dúvida. Assim como o Wilheim Meister de Goethe, Supertramp encontra os mais diferentes tipo humanos, desde hippies em crise existencial até o velho viúvo que lhe abre a chave de interpretação para o próprio passado. Mas um século que já conheceu a psicanálise e a psiciologia cognitiva não pode, simplesmente, deixar-se levar pela idéia de uma natureza como caminho para o Deus interior. Infelizmente Alex se embrenha cada vez mais no mato para encontrar, ao final, exatamente aquilo do qual estava fugindo: a humanidade. Pobre menino, andando em círculos atrás de si mesmo, perseguindo uma idéia de natureza há séculos perdida.

Todos que encontra parecem assombrados com sua espontaneidade e sagacidade. Estão, na verdade, apaixonados pela juventude que o tempo lhes roubou. Estão apaixonados pela natalidade, pelo novo começo que ele representa. Alex representa as possibilidades que todos eles não aproveitaram. Mas não vai aí dose alguma de ressentimento, só carinho. Todos o observam com olhos humanos que ele claramente ignora, em sua ainda infantil negação da civilização.

Ao assistir o filme, ao contrário de outros amigos, não me deu vontade de voltar às montanhas ou às trilhas. Na verdade senti um orgulho danado de já ter ido e voltado.

O pugilista cubano

Boa história, bom texto.

Do Estadão:

O ataque do clone

Dia desses recebi um pedido estranho via Orkut: uma leitora do meu blog queria meu telefone para confirmar se eu era eu mesmo. “Como assim?”, perguntei, “é claro que eu sou eu”. Sim, algo estranho devia estar acontecendo, mas eu tive de especular com ela um pouco mais para entender o estranho pedido. Na minha vaidade, já que ela era uma garota bonita, pensei que se tratava de algum tipo de cantada, mas, na verdade, a coisa era mais bizarra: ela vinha conversando no MSN com um sujeito que dizia ser eu. Ou melhor: ele nunca usava meu nome, mas apenas minhas experiências, meus relatos e minhas idéias. Parece que tudo começou numa conversa sobre Hilda Hilst em algum bate-papo UOL, conversa essa que continuou no Second Life, e o cara, segundo consta, dizia ter morado com a escritora na Casa do Sol, tal como eu morei, e vinha utilizando informações retiradas — segundo a garota pôde descobrir ao pesquisar no Google — do meu blog, dos meus textos, podcasts e assim por diante. (Impressionante como o assunto “Hilda Hilst” atrai gente maluca…) Ou seja: esse cara deve ser uma espécie de fã número 1 (vide o filme Uma Louca Obsessão), um psicopata que sabe tudo sobre mim e tenta me usar para se dar bem por aí. E o pior de tudo é que, segundo ela, a voz dele até se parece com a minha e, na webcam, tem o mesmo tipo físico. (Se bem que, no momento, não estou usando cavanhaque e ele, sim — mas eu postei fotos de cavanhaque no Orkut faz pouco tempo…) Enfim, esse não é meu primeiro “clone” a aparecer por aí — eu tinha sósias até na Universidade, e meus colegas costumavam me zoar por isso –, mas este é o primeiro a não apenas se parecer comigo mas a também querer se fazer passar por mim. A coisa acabou assim: enviei meu telefone para a figura e ela me telefonou no momento em que conversava com o cara na webcam do MSN. (Na ocasisão, eu estava no Glória cercado de gente, enquanto ele estava num quarto silencioso.) E, assim, ela o desmascarou.

Sempre soube dos riscos de se abrir a própria vida na internet e nos livros, mas essa situação me deixou bastante apreensivo. Imagine se nego comete algum crime enquanto se faz passar por mim! Tá louco. Se bem que a idéia daria uma boa história policial…

E já que você deve acompanhar meu blog, caro clone, fique sabendo que já estou a par de suas atividades. Cuidado!

Sobre o mundo cintilante

É interessante ver quem defende a liberação das pesquisas com as células-tronco como uma vitória da racionalidade. É mesmo muito racional jogar a vida em potência no lixo para celebrar a pesquisa também em potência. Porque se não há definição para o que é e quando se inicia a vida, se é algo polissêmico, a pesquisa, que busca curas também em potência, não é nada diferente. Fuzzy por fuzzy, é preferível saber antes se para promover curas é preciso cometer assassinatos.

Mas a questão nem é saber o que estamos dispostos a fazer em busca de curas em potência. Mas o quanto estamos dispostos a discutir as coisas sem falsificações. O apelo cientivista de que tais pesquisas levarão à cura de doenças – sem informar que a cura pode não ser encontrada – inunda o debate com um fanatismo cretino e alheio à razão. Além disso, a única coisa que essa empáfia cientivista iluminou foi a cabeça de megalômanos para a instituição de regimes totalitários e homicidas (o socialismo científico de Marx e o nazismo da raça superior), além de consensos equivocados, tratamentos inúteis e dietas que não levam a nada.

A coisa é importante demais para ser relegada a um simples embate entre Ciência e Religião.

Sobre luz e trevas

O Supremo Tribunal Federal liberou, recusando a ação direta de inconstitucionalidade contra Lei de Biossegurança, o uso de células-tronco para pesquisa científica. Segundo a Lei, os embriões utilizados deverão ser inviáveis, estar congelados a mais de três anos e o processo deverá ter a anuência do casal responsável pelo embrião. A Lei também veta a comercialização de material biológico para a realização de pesquisas. O placar foi de seis votos contra cinco. Discutiu-se também a criação de uma instância que fiscalize as pesquisas, mas o Governo Federal informou prontamente aos ministros que da conta do recado. Entretanto, a institucionalização de um tipo de controle deverá ser transformada em lei.

É uma vitória da racionalidade.

Não é, entretanto, uma derrota da Igraja Católica ou da vida, mas de um gurpo cujos argumentos se sustentam numa lógica, no mínimo, “fuzzy”.

Abortando a pesquisa…

Embora a maioria dos ministros do Supremo neguem que o debate travado pela liberação das pesquisas de células-tronco embrionárias seja sobre aborto – e insistem que essa discussão é pautada pela Igreja – um deles, Celso de Mello, aprofunda racionalmente a questão e levanta a dúvida:

Vocês sabem, resisti muito a ligar uma coisa a outra. Para mim, no próprio voto de Britto havia uma manifestação antiaborto, quando ele lembrou que o embrião, no útero, sem intervenção, resulta num novo ser. Estava enganado. O aborto, para alguns, está em votação!

A questão agora é sobre as restrições propostas pelos ministros. Segundo os cientistas que desejam a liberação das pesquisas, tais restrições as inviabilizam. E por quê? Porque propõem-se liberar as pesquisas, desde que os embriões não sejam destruídos.

Assim, admitindo que há dúvida quanto ao início de uma vida, que não faça nada, então. Porque na dúvida entre a possibilidade de matar ou não alguém, o que você faria?

Enfim, é um avanço no debate de idéias no Brasil, discutir o assunto claramente. Discute-se, em questão, o aborto, não o estudo de células-tronco. E isso não tem nada a ver com religião, mas de princípios do Direito Constitucional.

O Governo Britânico e os OVNIs

Não, não é um link para o site da revista Planeta ou quejandos. É o site do National Archives, o órgão oficial britânico responsável por guardar e preservar todos os documentos do governo. Eles agora abriram os arquivos oficiais sobre o avistamento de OVNIs nesses últimos anos.

Pronto. Isto é pelo meu pai, que adora o assunto, e pela Hilda Hilst, que também adorava.

O Roqueiro Burocrata

Baseado em argumento de Maurício Gouvêa

O Roqueiro Burocrata não começou como burocrata. Ele era muito jovem — treze anos — quando ganhou sua primeira guitarra. Mas já era audacioso. Não comprava revistas com as cifras das canções. Achava que era questão de honra tirá-las de ouvido. Depois já não comprava discos. Queria memorizar os acordes na primeira audição. Nem sempre conseguia, mas fazia progressos vertiginosos, isso era fato.

Quando começou a tocar nas festas de amigos, não aceitava dinheiro. Queria apenas o beijo da garota mais bonita, aquela que sabia interpretar seus olhares e esperar até o fim da festa para ficar com o geniozinho da guitarra. Ele ganhava os beijos, ela ganhava a inveja das amigas. Mas nessa época ele ainda não cantava. Seu coração se apertava quando ele tentava cantar o amor. Sentia que algo dentro dele ainda não era grande o bastante para querer transbordar. Foi só depois do primeiro grande fora — só depois que a mulher mais linda do mundo preferiu um advogado de terno e gravata e contracheque — que ele aceitou que o amor afinal não era assim tão nobre para exigir mais que sua humilde voz. E o curioso é que, depois disso, sua voz melhorou e se elevou à altura do amor. É o mistério da beleza: ela só se entrega a quem se descobre infinitamente menor que ela.

E foi assim que o Roqueiro Burocrata — naquela época ele ainda não era burocrata — se tornou o melhor roqueiro do mundo. Quando ele cantava, era o mundo que cantava a si mesmo pela sua voz. Quando ele tocava, era o que sobrava do mundo que encontrava lugar na sua guitarra. E nada passava indiferente à voz e às mãos do Roqueiro Burocrata, e ele era o melhor, embora só quatro pessoas soubessem disso: seu amigo Lucas, o Carlos, o Marcos Flávio, que era dono do estúdio onde eles gravavam, e a filhinha do Marcos Flávio, que ficava com o papai enquanto ele mixava as gravações. E mais umas cinco ou seis pessoas sabiam do fato quase secreto: eram as pessoas que compraram seu primeiro disco e jamais viram sua cara, nem tinham a menor vontade de conhecê-lo, mas simplesmente sabiam, como sabemos o que é um sorriso e o que é a chuva, que ele era o melhor do mundo no que fazia.

Mas algo obscuro se passou na alma do Roqueiro Burocrata — talvez a falta de dinheiro, talvez outro tipo de desesperança — e ele começou a pensar que o sucesso não era uma questão de ser o melhor. O sucesso tinha algo a ver com contratos, horários, camarins com banheiras e ar condicionado, gravadoras que investiam 30 por cento em publicidade, direitos autorais e turnês. E a música não era mais o único lugar onde ele reencontrava sua fé. A música era um dever de casa que ele fazia em troca do seu quinhão de mundo.

E todos passaram a ouvir o Roqueiro Burocrata. Todos, menos aqueles cinco que haviam comprado seu primeiro disco e sabiam que ele era o melhor do mundo. Agora ele era conhecido do mundo, mas era apenas mais um. E o curioso é que ele mesmo não notara a diferença, porque quando subia no palco, e cumpria seu dever profissional, as pessoas que estavam no show também queriam apenas cumprir algum protocolo. Estavam ali para agradar ao namorado, para esquecer os pais, para encontrar os amigos, para aproveitar a promoção de assinante de jornal, para usar os ingressos que haviam ganhando na campanha da empresa, enfim, tinham ido ali por qualquer motivo, menos pela música. E o Roqueiro Burocrata também não tinha ido lá para fazer música. E de fato sua música não encontrava os ouvidos de ninguém, e quando tudo acabava, ele ligava para a mulher e dizia: “Terminamos mais um amor; em breve poderei voltar para casa.”

E foi assim que o Roqueiro Burocrata deixou de ser músico e se tornou apenas um roqueiro burocrata. Mas até hoje ninguém notou a diferença. Nem mesmo ele.

Metrô — 19

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Estação Clínicas, São Paulo

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