Cada dia que passa tenho mais certeza: há uma conspiração dos meus amigos no que se refere a “temas ideais para estrear no Garganta”. Fico paranoicamente imaginando o troca-troca de emails: “E aí? Qual o melhor assunto e a melhor abordagem para atazanar o Yuri?” Deve ser isso, penso cá comigo, embora eu seja o único a conhecer todos os colaboradores. Porque você, Tulio, mirou e acertou a jaca muito em cheio para ser mera coincidência. Há de ser nada mais nada menos que um complô da Kaos contra este site. Mas vamos lá, bróder, seu artigo pede a intervenção do meu lado Ombundasman.
Na minha singela opinião, a questão da lei sobre o aborto, no fundo no fundo, é tão somente uma questão de crença e de honestidade intelectual. E me refiro não apenas à crença dos religiosos que o combatem, mas também à daqueles que acreditam completamente, que têm plena fé, de que a vida não é senão um amontoado, dos mais complexos, de reações físico-químicas. Convenhamos, pois, para facilitar a discussão, que todo o espectro de convicções a respeito da vida está limitada por estes dois pontos: o da fé absoluta na vida após a morte, isto é, o da fé na existência do espírito e, no lado oposto, o da fé total na cessação de toda a vida após a morte, da fé unicamente na matéria e no “nada psíquico” que procede à entropia dela (isto é, à entropia do organismo material sem vida).
Assim, dizer que é “burrice” não apoiar a plena legalização do aborto é uma profissão de fé na total independência da matéria a qualquer instância além e acima dela. Logo, segundo você, Tulio, eliminar um feto é menos chato do que eliminar um camarão. O problema é: como você, como um cientista ou um médico abortista pode ter certeza disto? Por acaso foi decretado pela ONU que todos os mistérios além do céu e da Terra foram já esclarecidos por nossa (vã?) filosofia? Ou por nossa ciência? Eu não li esse decreto. O físico Max Planck dizia que, para a religião, Deus está no começo, para a ciência, no fim. Ele jamais seria arrogante a ponto de afirmar, graças a um punhado de testes de laboratório, que Deus não existe. Seus colegas Werner Heisenberg e Niels Bohr — segundo relato do próprio Heisenberg (“Viagem aos centros da Terra”, Vintila Horia) — não questionavam em suas discussões privadas se Deus existia ou não, mas sim se ele era ou não um Deus pessoal, isto é, uma Personalidade Divina. (O primeiro acreditava que sim, o segundo, que não.) Você agora vai me perguntar: mas o que tem todo esse papo a ver com aborto? Ora, o fato de que, segundo a Palavra, Deus é Espírito e a própria Vida da nossa alma. Em outras palavras: um feto tem alma(psiquê)?
Bem, caso você me diga que um feto não tem alma, eu lhe direi: prove. Você me dirá: “então prove você o contrário, prove que ele tem uma alma, que há nele espírito.” Infelizmente, meu caro, o problema que você propôs não é este, mas o da legalização do aborto uma vez que alguns fetos não passam, segundo suas palavras, de “carniça”, de “cadáver de bebê” e nhacas do gênero. Para tanto, você se baseia no fato de que os tais são anencéfalos — e não “acéfalos”, o que é muuuuito diferente. Mas e o caso daquele figura que, após um exame médico, descobriu que era ele mesmo um “anencéfalo”? Isso é verdade. E o cara não se parecia com o Jabba The Hutt. Era simplesmente um estudante universitário de matemática, com QI 126, cujo cérebro não passava duma camada de 1 milímetro de espessura a cobrir o topo da sua coluna vertebral. Sim, ele tinha hidrocefalia. Mas poderia ser um colega seu de faculdade. Ou um feto abortado.
Observe que não estou anatematizando: “Deus existe e vai condenar todos os abortistas!!” Não. Estou apenas seguindo os preceitos do direito, segundo o qual “todos são inocentes [inclusive da acusação de serem uma carniça ou um camarão] até prova em contrário”. Doutro modo seria uma condenação sumária e injusta.
O polêmico biólogo Rupert sheldrake tem uma teoria das mais interessantes: o cérebro não é um “produtor” da mente, mas um receptor dela. O que explicaria o caso do estudante de matemática e de vários outros, haja vista tal caso não ser considerado uma exceção. (Veja o artigo citado.) Nem preciso recorrer ao Livro de Urântia — escrito nos anos 1930 — para apoiar essa mesma tese, uma vez que ele afirma categoricamente ser de fato o cérebro um receptor da mente. Trocando em miúdos: há a possibilidade de que mesmo um feto anencéfalo tenha uma alma, se é que está no cérebro — e portanto na mente — o misterioso elo do corpo com o espírito. (Descartes acreditava que a conexão se dava através da glândula pineal.)
Mas depois você se entrega e mostra que sua preocupação com o cérebro dos fetos não tem conexão com a possibilidade de eles terem mente, psique ou alma. Sim, você não questiona em momento algum se o sistema nervoso central tem algo a ver com alma. Porque você também defende o aborto de vítimas de estupro. Embriões que resultam de estupros não são de modo algum necessariamente anencéfalos. Claro, eu jamais afirmaria não ser um fardo o tornar-se mãe do filho dum estuprador. A princípio, deve ser horrível. Mas e depois? Quem irá explicar (ou negar) os mistérios da maternidade e do “amor de mãe”? Porque não há razão para condenar uma criança pelo crime do pai. A não ser que você a considere um camarão e não uma criança. E daí voltamos ao início.
Já dizia o Riobaldo: “Viver é muito perigoso”. Sim, já temos idade para saber (este é um blog balzaquiano): viver é arriscado. Quase toda loucura oriunda de intelectuais supostamente bondosos, oriunda dessa gente que realmente parece preocupada com essas pobres moças que não terão como alimentar o bebê, não vem senão dessa mania de querer tirar o caráter acidental do mundo. Quem está na chuva, está fadado a se molhar. Eu mesmo demorei muito tempo para aprender isso, talvez tempo demais. Não há desculpa para a eliminação duma criança. O bem-estar da mãe? O conforto dela? Extirpar o objeto para que os olhos não o vejam e o coração não o sinta? Isto tudo é covardia. Mesmo a possibilidade da morte da mãe, para uma mãe que é mãe por inteiro, não é desculpa. “Não há amor maior do que o daquele que dá a vida pela de seu amigo”. Se é assim quanto ao amigo, imagine então quanto ao filho. Estamos aqui para saber se temos “moral”, saca?
Quanto a fazer como os índios, me lembrei do caso contado pelo Pedro Novaes. Há um povo aí cujo costume é o pai matar um dos filhos gêmeos: só pode haver um. O índio que o Pedro conhece fugiu da tribo, exilou-se. Preferiu perder toda a tribo a perder um de seus filhos. Será que, para esses índios em particular, quando nascem gêmeos, há apenas uma alma a ser usada por um deles? Vá até lá e prove para eles que não é verdade. “Ah, tudo é relativo, seria etnocentrismo dizer para que acreditem em outra coisa.” Tá bom, diga isso pra consciência desse índio que preferiu morrer socialmente a matar um de seus filhos. Se há espírito, ele só pode ser universal.
Na verdade, esse fazer “como os índios” a que você se refere, se chama “eugenia negativa”. A princípio, a eugenia parece algo muito bom, afinal, trata-se do melhoramento da raça, da espécie. E eu mesmo concordo com ela. Mas você, meu caro Tulio, está falando em termos de eugenia negativa, isto é, está defendendo a eliminação dos “incapazes”, dos “defeituosos”, dos “deformados”, dos “Jabba de Hutts”. Mais um pulinho e chega na eliminação dos feios, dos estrábicos, dos orelhudos, dos futuros carecas, dos narigudos… Narigudos? Daqui a pouco você falará em eliminar judeus. Isso é nazismo, meu amigo. Não vejo nada de mais em apoiar a eugenia positiva, principalmente junto às mulheres: “meninas, não se casem com homens burros, estúpidos, horrorosos, grosseiros, violentos, etc.” Ninguém sai morto disso. Tampouco sou contra selecionar, in vitro, um óvulo e um espermatozóide supostamente perfeitos para posterior fertilização. Mas esse seu “fazer como os índios” é crime e nada mais.
Em suma, por que digo que a legalização do aborto é uma questão de crença e honestidade intelectual? Ora, porque qualquer juiz, se intelectualmente honesto, ainda que não tenha provas conclusivas de que um feto é “gente”, optará pela “dúvida razoável” e decidirá que ele deve permanecer vivo. Se autorizar a execução, é um crente — um crente do nada, um fiel da morte, um mero niilista. Todo julgamento deve, ainda que não alcance a verdade, esforçar-se por buscar sua direção, o seu sentido.
Agora tire o pé da jaca e vá se limpar, Tulio. (Estamos esperando por suas animações e desenhos.)
Abração
O eDitador
(agora também na versão Ombundasman)