Meu mundo nunca teve muitos heróis. Sou de uma geração pobre deles. Não porque morreram de overdose como os do Cazuza e seus contemporâneos. Não. Eles simplesmente desapareceram num mundo de “celebridades” tão escadalosamente fluorescentes quanto voláteis. Isso é mais triste que parece. É solitário viver sem heróis. Ficamos sarcásticos e cínicos quando crescemos iconoclastas. Até os super heróis dos quadrinhos têm segredos sórdidos, preferências sexuais pouco ortodoxas, medos incontidos. Nada escapa aos olhos crus de uma adolescente órfã de heróis.
Meio desesperada e ainda adolescente, adotei alguns dos meus pais e sofri com a morte moral de um deles recentemente, o Genoíno. Já adulta, tomei outros do meu irmão, mais fortes e interessantes com suas conquistas extremas, mas distantes da minha realidade de café e sofá.
Apenas um deles ficou e se tornou mais próximo quando me mandei de mala e cuia pras Antípodas. Sir Edmund Hillary, o primeiro ocidental que nos anos 50 escalou o Everest.
Esse ícone nacional da Nova Zelândia, estampado na nota de 5 dólares neozelandeses e exemplo do que se pode chamar de cultura kiwi ou “kiwi lifestyle” assumiu um papel importante na minha “educação” para um mundo melhorado, povoado por pessoas com valores fundamentais que não mudam com o tempo. Um mundo com heróis finalmente!
Quando vim pra cá morar ao pé do Ruapehu (o vulcão), soube que Sir Ed (como era chamado por aqui), aos 16, numa excursão da escola ao Ruapehu, ficou fascinado pela montanha. Não o culpo. Eu, que vim do Planalto Central, sofri uma espécie de epifania diante “dele”, coberto de neve, radiante numa noite clara de verão.
É quase ridículo assumir publicamente que me senti próxima do herói. Eu, uma medrosa profissional, de repente, entendi melhor meu irmão e suas aventuras, suas conquistas e, finalmente, seus heróis – Shackleton, Scott, Klink, Blake, Cousteau…Hillary.
Depois, à medida em que ia me aclimatando, o jeito “kiwi” de viver pareceu menos absurdo e rude. O DIY (Do it yourself), o andar descalço, o prático antes do bonito… E, mais uma vez, Sir Ed, que se definia como um “ordinary kiwi bloke” (um neozelandês comum), serviu de modelo.
Ele subiu o Everest, chegou ao Pólo Sul, subiu o Ganges e muito mais. Sobreviveu a todos os tipos de intempéries naturais e interiores até falecer hoje, aos 88 anos, na mesma casa de fazenda em que nasceu, nos arredores de Auckland, e para onde sempre voltou depois de cada viagem.
O Himalaia tomou-lhe bons anos de vida (incluindo as expedições e depois a construção de hospitais e escolas com os fundos de ajudou a levantar mundo afora), a mulher e a filha adolescente (mortas num acidente de avião nas montanhas nos anos 70), a alegria de viver (uma depressão que durou anos depois do acidente). Mas o herói, e mais herói por isso, sempre contou do que as montanhas lhe deram, do que aprendeu perambulando por lugares longínquos e, principalmente, por entre as pessoas que lá vivem, como os Sherpa, que, segundo ele, resgataram-lhe a paz de espírito.
Fiquei triste com sua morte hoje. Não é fácil saber da morte de um herói, ainda mais com tão poucos. Procurei consolo falando dele pra minha filha, que me ouviu com olhinhos arregalados e curiosos de bebê. “Kiwi” como Hillary, Clarice crescerá ouvindo muito sobre o herói de seus pais até que encontre os seus próprios. Até lá, Clarice, como diria Sir Ed, “be determinate, aim high”!